quinta-feira, 1 de março de 2012

O uso do amianto no Brasil: ''A ciência não evolui no banco dos reús, mas no debate acadêmico''. Entrevista especial com Hermano Albuquerque de Castro

Empresários da indústria do amianto interpelam judicialmente médico sanitarista por divulgar dados sobre os efeitos danosos dessa substância na saúde humana. Mesotelioma e problemas respiratórios são doenças que podem surgir, aponta.
Confira a entrevista (Por Márcia Junges) para o Instituto Humanitas Unisinos -  Interpelado judicialmente pelo Instituto Brasileiro de Crisotila, fundado por empresários da indústria do amianto, o médico sanitarista Hermano Albuquerque de Castro afirma, em entrevista concedida por telefone para a IHU On-Line, que desde o início do século XX já são conhecidos os efeitos danosos do amianto na saúde humana. O que ele fez foi analisar dados divulgados pelo Datasus, do Ministério da Saúde, que entre 1980 e 2003 registrou 2414 mortes relacionadas à substância num estudo realizado no Brasil. “A ciência não evolui no banco dos réus, mas no debate acadêmico. Se a indústria acha que o amianto pode ser utilizado porque há meios de controlá-lo, então traga seus estudos para os congressos acadêmicos, que os publiquem nas revistas médicas e vá para o debate científico”. Em sua opinião, é perfeitamente viável substituir o amianto por outras substâncias, pois mais de 50 países já o fizeram. Tecnologia existe, mas é preciso interesse em aplicá-la. Sobre a condenação dos executivos italianos da Eternit, em janeiro, Castro diz que ela é exemplar: “Está se fazendo justiça, que deveria ser feita em outros locais também, como no Brasil, no mínimo reconhecendo as doenças e indenizando os doentes”.
Hermano Albuquerque de Castro (foto) é graduado em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, doutor em Saúde Coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz. Desde 1986 é pesquisador da Fiocruz e atua no Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por que o senhor foi interpelado judicialmente a respeito de seus estudos sobre os efeitos do amianto na saúde humana? 
Hermano Albuquerque de Castro – Essa interpelação foi feita em função de declarações contidas em um artigo que escrevi em 2008 sobre a mortalidade por mesotelioma no Brasil. Esse texto foi feito com base em dados fornecidos pelo Datasus, órgão do Ministério da Saúde, que registrou 2414 mortes num estudo que vai de 1980 a 2003. Fui interpelado para saber de onde tirei as informações. O dado primário, ressalto, não é meu, mas foi gerado pelo Ministério da Saúde. Apenas analisei a distribuição dessa mortalidade no Brasil. Outro motivo da interpelação diz respeito à informação sobre riscos nas pessoas que manipulam o amianto. Essa substância é considerada cancerígena por instituições como o The International Agency for Research on Cancer – IARC, que afirma não haver limite de tolerância para o risco de câncer. Isso está escrito nos textos da própria Organização Mundial da Saúde – Environmental Health Criteria 203, 1998 – que compilou vários textos epidemiológicos sobre o asbesto crisotila.
O que fiz foi passar a informação à sociedade afirmando haver um risco. Não posso dizer que não há risco de câncer, de que a manipulação desse material pode ser feita de qualquer forma. Qualquer trabalhador que lidar com o amianto deve se proteger. Se for cortar uma telha, além dos Equipamentos de Proteção Individual – EPIs de uso obrigatório, há todo um cuidado com a vestimenta adequada a se usar nessa ocasião. Além disso, existe uma resolução do Conama 348 que define os resíduos da construção civil, como telhas contendo amianto, como resíduo perigoso e que deve ter tratamento especial.
IHU On-Line – Acredita que essa foi uma tentativa de intimidar suas pesquisas?
Hermano Albuquerque de Castro – Penso que sim. Já disse isso em outras entrevistas. A melhor forma de debater o problema do amianto na área da saúde é disponibilizar as informações e discutir nos espaços que competem, como o da academia. A ciência não evolui no banco dos réus, mas no debate acadêmico. Se a indústria acha que o amianto pode ser utilizado porque há meios de controlá-lo, entrão traga seus estudos para os congressos acadêmicos, que os publiquem nas revistas médicas e vá para o debate científico. Continuo minhas pesquisas, a não ser que por decisão judicial impeçam meu trabalho, só assim poderão calar minha boca e da sociedade inteira, além de vários institutos que colocam esse debate publicamente. Depois do episódio que se deu comigo, vários institutos emitiram notas de repúdio, trazendo ao debate a questão do amianto. É o caso do Instituto Nacional do Câncer, da Fiocruz, do Conselho Nacional de Saúde, da Sociedade Brasileira de Pneumonia e Tisiologia, da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva e das Sociedades de Pneumologia do Rio de Janeiro e de São Paulo. Várias instituições públicas de saúde externaram estranheza se solidarizando com o caso e colocando claramente que o amianto é considerado cancerígeno no mundo inteiro. Quase todos os países de primeiro mundo já proibiram a substância.
IHU On-Line – Quais são as principais descobertas que o senhor fez em relação às doenças causadas pelo amianto desde que começou a pesquisar esse tema?
Hermano Albuquerque de Castro – Na verdade, não descobri nada. A descoberta de que o amianto é cancerígeno data do começo do século XX. Em 1919 já havia publicações demonstrando a relação de causalidade entre a doença e a substância. O que fazemos é acompanhar os pacientes e publicizar os dados clínicos em revistas científicas, mostrando a correlação da imagem radiológica com a função pulmonar, apresentando casos clínicos em congressos médicos sobre como os pacientes adoecem e morrem. A média e o tempo de vida são outras variáveis que discutimos sobre trabalhadores expostos.
Avançamos também na questão da vigilância. A Fiocruz desenvolveu um projeto de vigilância aos expostos ao amianto no Brasil, incluindo a vigilância ambiental. Outro fato a se destacar é o estudo que fazemos sobre a distribuição de mortalidade. Oriento teses sobre isso. Na Revista Ciência e Saúde Coletiva de janeiro deste ano, há um artigo do meu grupo de pesquisa sobre um estudo de percepção de risco quanto ao amianto na cidade de Poções, no interior da Bahia. Neste momento, oriento uma tese de doutorado sobre a elaboração de um questionário sobre o mesotelioma e pretendemos iniciar um estudo de caso-controle. Estudamos as doenças em si, e não a relação com amianto, já que essa relação já está dada. Não sou o primeiro a dizer que essas doenças têm relação com o amianto. Isso já está escrito. Apenas aprofundei conhecimento para entender o processo de adoecimento no Brasil.
IHU On-Line – Quais são os problemas de saúde decorrentes da exposição ao amianto em trabalhadores e na população em geral, que convive com materiais fabricados com esse componente?
Hermano Albuquerque de Castro – O problema principal acontece com os trabalhadores da indústria do amianto. Temos um conjunto de doenças respiratórias relacionadas a essa substância. Para os trabalhadores, a principal é a asbestose pulmonar, decorrente da inalação da fibra ao longo de anos. Há um período de latência de cerca de 20 anos para que o problema se desenvolva. Na medida em que aumenta a inalação da fibra, cresce a chance de se adoecer. O câncer de pulmão é outra enfermidade que decorre dessa exposição. E o tabagismo potencializa esse tipo de câncer. Alterações funcionais, placas pleurais são bem características da exposição ao amianto em trabalhadores. Essas placas levam uns 15 anos para aparecer, e são uma reação da pleura à fibra inalada. Esse quadro pode levar a problemas respiratórios graves.
Mesotelioma
Há, ainda, o mesotelioma, câncer da pleura relacionado de 95 a 99% à exposição do amianto. Essa substância, em termos percentuais de risco, é a que mais tem relação com o mesotelioma. Na medida em que aumenta o consumo de amianto no país, aumentam os casos e a mortalidade por mesotelioma. Já nessa doença o período de latência é de 35 a 40 anos. O mesotelioma tem sido considerado no mundo inteiro como indicador de exposição ambiental porque aparece após inalação de baixas doses. Boa parte dos estudos mostra que muitas pessoas que possuem a doença não têm uma história explícita de exposição ambiental. Outras têm história explícita de exposição ambiental porque moraram próximo a indústrias, ou têm parentes que trabalharam na indústria e levaram a fibra para dentro de casa. Não é uma exposição ocupacional, porque tais pessoas nunca chegaram a trabalhar nesse tipo de indústria. Contudo, fortuitamente foram expostas à substância.
 Na Fiocruz não temos registro de  nenhum caso desse tipo de exposição. No entanto, há estudos nesse sentido, inclusive no Rio Grande do Sul, feitos pela Secretaria de Saúde, no qual foi realizado um levantamento retrospectivo de pessoas que morreram de mesotelioma e cujas famílias foram questionadas se essa pessoa era trabalhadora de indústria do amianto. Metade dos familiares respondeu que essas pessoas doentes não haviam trabalhado nessa área. Ou seja, não tinham uma história ocupacional ligada diretamente à exposição do amianto. O que se atribuiu é que essas mortes estejam ligadas a uma exposição ambiental, que costumo classificar como ambiental explícita (morar muito próximo de uma indústria de amianto) e ambiental não explícita (estamos expostos ao amianto em diferentes situações em nossa vida: respiramos amianto que sai do freio dos automóveis, habitamos em casas nas quais pode haver telhas de amianto quebradas). Na maioria dos países há uma grande parcela de doentes com mesotelioma que não tiveram exposição direta ao amianto.
IHU On-Line – O amianto já foi banido de 58 países. O que explica o fato de continuar sendo usado largamente no Brasil?
 Hermano Albuquerque de Castro – No Brasil, o único problema é o econômico. Uma única mina, em Minasul, mantém e quer manter seu ganho e produção. Em vez de o Estado brasileiro apostar numa reconversão econômica dessa região para proteger a vida dos milhões de cidadãos brasileiros, prefere manter uma mina que emprega 300 pessoas. Chile e Argentina já baniram o amianto dos processos produtivos de diversos produtos.
IHU On-Line – A indústria do amianto é um lobby tão poderoso quanto a indústria do tabaco e a farmacêutica, por exemplo?
Hermano Albuquerque de Castro – Não sei se é tão forte quanto esses dois, mas sei que temos projetos de lei que tramitaram no Congresso Nacional (o primeiro do Gabeira, depois do Eduardo Jorge, agora do senador Suplicy) para banir o amianto e que nunca foram para a votação e acabam presas nas comissões. O fato é que isso nunca se tornou realidade em nosso país. A indústria do tabaco, apesar do lobby poderoso, possui muitas regras de restrição ao seu uso. Contudo, no Brasil ainda não existem indenizações à sociedade pelos danos causados pelo tabaco e menos ainda para o amianto. Mas deveria haver.
HU On-Line – Como analisa a condenação do magnata suíço Stephan Schmidheiny, 65 anos, e o barão belga Louis de Cartier de Marchienne, 92 anos, fundadores e proprietários da Eternit, na Itália, em 14 de fevereiro?
Hermano Albuquerque de Castro – Isso é exemplar. Está se fazendo justiça, que deveria ser feita em outros países também, como no Brasil, no mínimo reconhecendo as doenças e indenizando os doentes. Foi o que houve na Itália. A condenação aconteceu muito em função dos danos e óbitos causados em trabalhadores da indústria Eternit e moradores da região. Penso que foi muito justo o que foi decidido lá.
IHU On-Line – Quais são os produtos que contém amianto? Qual é a durabilidade da ação danosa desse material?
Hermano Albuquerque de Castro – 90% dos produtos que usam amianto no Brasil vão para a indústria do fibrocimento, como telhas. Essa substância também compõe freios e papelões hidráulicos. Sua ação danosa está ligada diretamente à possibilidade de inalação. Se a pessoa inalar, haverá a possibilidade de adquirir uma doença relacionada ao amianto/asbesto.
IHU On-Line – Se uma pessoa vive em uma residência com telhas de amianto, há o risco de adoecimento em função disso?
Hermano Albuquerque de Castro – Essa pergunta é fundamental. Não oriento nenhuma pessoa a tirar as telhas de amianto das suas casas. Isso porque há risco em se tirar as telhas do lugar, já que as pessoas o fazem sem nenhuma proteção. Por orientação geral, não se deve inalar fibra de amianto. Quando retirar telhas, é preciso se proteger com máscara e roupas adequadas. De resto, é fundamental fazer uma manutenção preventiva nas telhas, para verificar seu estado e evitar deterioração.
IHU On-Line – Qual é a viabilidade de abolir o uso do amianto, substituindo-o por outras substâncias?
Hermano Albuquerque de Castro – Há viabilidade, sem dúvida, o que é comprovado pela substituição desse produto em mais de 50 países. Por que seríamos diferentes? O Brasil quer ir para o primeiro mundo, então poderíamos dar o primeiro passo nessa direção. A Eternit na Europa produz telhas sem amianto. Por que aqui isso não pode ser feito também? Os automóveis produzidos no Brasil possuem amianto. Já aqueles produzidos para exportação não têm esse componente. Tecnologia existe, mas é preciso querer aplicá-la.

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