quinta-feira, 21 de junho de 2012

Economia verde: uma expressão da mercantilização da terra. Entrevista especial com Guillermo Kerber

"Conscientes de que muitas vezes as religiões não têm sido fiéis a suas intuições originais, os líderes reforçaram um chamado a cuidar do planeta", afirma o diretor do programa de Mudanças Climáticas do Conselho Mundial de Igrejas.
 Ao refletir sobre a participação das diversas igrejas e religiões na Cúpula dos Povos e na Rio+20, o filósofo e teólogo uruguaio Guillermo Kerber afirma que, em conferências como essa, uma contribuição específica das igrejas é vincular o que está acontecendo nas comunidades com a discussão e negociação internacional. “A participação das igrejas não tem sentido em reuniões da ONU se não for para transmitir as dores, as esperanças, os anseios e as soluções que as comunidades podem trazer às crises (ecológica, econômica, financeira, moral, espiritual) nas quais estamos imersos”. Na entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ele declara que “a mística e a ética das diferentes religiões convergem para recolocar o ser humano como parte da criação e com uma responsabilidade única, dadas as suas capacidades de destruição e de cuidado”. E conclui: “a discussão sobre o tema ambiental não pode se desligar da discussão sobre a pobreza e a riqueza no mundo”.
Filósofo e teólogo uruguaio, Guillermo Kerber (foto) é também doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo - Umesp. Reside com sua família em Genebra, onde trabalha como diretor dos programas de Mudanças Climáticas e de Assuntos Internacionais, Paz e Segurança Humana do Conselho Mundial das Igrejas - CMI. No Uruguai, Kerber foi professor de Ética na Universidade da República e na Universidade Católica, além de ter trabalhado em ONGs vinculadas ao desenvolvimento, à ecologia, ao ecumenismo e aos direitos humanos. É autor de O Ecológico e a Teologia Latino-Americana (Ed. Sulina, 2006) e coeditou a edição da revista do Conselho Mundial de Igrejas, The Ecumenical Review, de julho de 2010, sobre mudanças climáticas.
CONFIRA A ENTREVISTA.

IHU On-Line - Como as diversas religiões estão articuladas e dialogando na Cúpula dos Povos?

Guillermo Kerber - Na Cúpula dos Povos um dos vários espaços que foram criados se denomina “Religiões por Direitos”. Nesta área encontram-se representantes de várias religiões, dentre as quais religiões afro-brasileiras, cristãos de várias denominações (episcopais-anglicanos, católicos, luteranos, metodistas, presbiterianos, etc.), representantes dos povos indígenas, judeus, muçulmanos, espíritas, etc. O grupo inter-religioso do Rio de Janeiro, surgido da articulação na Eco-92 tem trazido uma participação multilateral que, em um processo de colaboração mútua, permitiu elaborar uma agenda para a área, coordenada por uma secretaria de apoio, liderada pelo Dr. Marcelo Schneider, com os objetivos de promover atividades autônomas e compartilhadas em um espaço comum, organizar e coordenar a promoção de vozes religiosas em várias atividades da Cúpula dos Povos e acompanhar e compartilhar as iniciativas ecumênicas e inter-religiosas em atos públicos, marchas, assembleias e outras manifestações públicas.

IHU On-Line - Qual a proposta do movimento religioso para os temas discutidos na Cúpula dos Povos, especialmente no que se refere à questão da sustentabilidade do planeta?

Guillermo Kerber - O movimento religioso tem tentado trazer uma voz comum das diferentes religiões sobre a necessidade do cuidado da terra. Em um painel com líderes de várias religiões ficou confirmada a preocupação pela situação do planeta. Questões como a segurança alimentar, a mudança climática e a degradação ambiental são preocupações comuns. Os variados credos, textos sagrados e valores têm elementos comuns: o valor da paz, da justiça, o cuidado da criação. Conscientes de que muitas vezes as religiões não têm sido fiéis a suas intuições originais, os líderes reforçaram um chamado a cuidar do planeta.

IHU On-Line - Qual a especificidade do olhar religioso sobre os desafios em relação à sustentabilidade do planeta?

Guillermo Kerber - A perspectiva religiosa tem uma visão holística sobre o planeta. A integridade da criação se vê, no entanto, ameaçada por um modelo de desenvolvimento que tem destruído a sustentabilidade através de uma produção devastadora e de um hiperconsumo, enquanto que bilhões de pessoas continuam morrendo de fome. As igrejas cristãs começaram a tratar da questão da sustentabilidade desde meados dos anos 1970. Na época, já falavam de comunidades e sociedades sustentáveis, conjugando a preocupação pelo ambiente e pela situação de pobreza. A mística e a ética das diferentes religiões convergem para recolocar o ser humano como parte da criação e com uma responsabilidade única, dadas as suas capacidades de destruição e de cuidado.

IHU On-Line - Qual a contribuição a Igreja pode oferecer no diálogo em busca de soluções coletivas?

Guillermo Kerber - A Igreja apresenta um marco de valores éticos e espirituais, construídos a partir da Bíblia e da tradição que nutre uma discussão sobre soluções possíveis e efetivas às crises que estamos vivendo. Escutando e amplificando os gritos das comunidades que estão sofrendo por causa das mudanças climáticas e da degradação ambiental, a Igreja está atenta também a alternativas que se construam a nível micro para projetá-las a um nível macro.

IHU On-Line - Como você e demais membros da Igreja avaliam a proposta de uma economia verde como alternativa para erradicar a pobreza?

Guillermo Kerber - Lamentavelmente a economia verde, da forma como vem sendo discutida, não responde às necessidades dos pobres; pelo contrário, está sendo uma expressão da mercantilização da terra. A especulação em muitos países em relação ao acesso à água potável é um exemplo claro disso. A água não é vista como um bem, escasso, a propósito, mas como uma mercancia com a qual se pode lucrar, às custas, muitas vezes, de uma maior pauperização e injustiça. A economia verde não inclui fundamentos que garantam que seja uma economia justa, solidária, preocupada com as gerações futuras, a serviço dos mais vulneráveis como em várias instâncias tanto da Cúpula dos Povos como da Conferência das Nações Unidas se tem denunciado.

IHU On-Line - Como o debate acerca das mudanças climáticas está aparecendo na Cúpula dos Povos?

Guillermo Kerber - Apesar de a agenda da Conferência das Nações Unidas ter limitado seus objetivos aos temas da economia verde e ao marco internacional para o desenvolvimento sustentável, a mudança climática tem aparecido fortemente na Cúpula dos Povos. No espaço de Religiões por Direitos, uma das tendas é sobre justiça climática, baseada em uma perspectiva ética que reconhece que aqueles que hoje mais estão sofrendo as consequências negativas da mudança climática são aqueles que menos têm contribuído para ela. O informe do Grupo Internacional de Especialistas sobre o Clima denomina comunidades vulneráveis a estes grupos que incluem comunidades indígenas, os mais pobres, os que vivem em zonas particularmente afetadas pela mudança climática, etc. Estes grupos estão na Cúpula dos Povos denunciando uma política mesquinha por parte dos estados que não respondem eficazmente ao desafio das mudanças climáticas.

IHU On-Line - Qual a importância da articulação social neste momento? Como avalia a participação da sociedade civil e dos movimentos sociais no encontro?

Guillermo Kerber - Há uma grande participação da sociedade civil e dos movimentos sociais na Cúpula dos Povos. Há muitas discussões e propostas, mas a articulação, que é fundamental, ainda tem muito caminho a percorrer. Cada grupo mantém suas prioridades para além de acordos globais, uma estratégia comum com uma agenda clara, ainda que não tenha sido acordada. Na Rio-92 o chamado Fórum Global tinha um canal oficial de comunicação com a Conferência das Nações Unidas. Esse não é o caso hoje. O Aterro do Flamengo (lugar onde acontece a Cúpula dos Povos) e o Rio Centro (onde acontece a Conferência das Nações Unidas) não só estão separados geograficamente (cerca de 35 quilômetros) como também estrategicamente. Tem havido, no meu modo de ver, uma vontade explícita de impedir uma participação mais ativa da sociedade civil, para além das ONGs com estatuto consultivo nas Nações Unidas, que tentam, através de eventos paralelos e de um trabalho de incidência diante dos representantes dos governos, trazer a Cúpula dos Povos à Conferência das Nações Unidas.

IHU On-Line - Além da questão ambiental, que outros temas devem fazer parte das discussões atuais da Igreja?

Guillermo Kerber - A discussão sobre o tema ambiental não pode se desligar da discussão sobre a pobreza e a riqueza no mundo. O conceito de ecojustiça, referido à justiça econômica e à justiça ecológica, reflete esta preocupação. Na Rio+20, mais uma vez se desvela quem são os atores de poder. Não são, como muitos dão como certo, os estados, mas as multinacionais e a banca internacional. Estes ditam os programas de muitos estados. Nas crises financeiras que temos visto nos últimos anos, os estados têm corrido para salvar os bancos, mas não para salvar os pobres, os desempregados, os sem-teto e sem-terra, as comunidades indígenas, etc. A questão ambiental não pode ocultar o social, mas ambos devem ser considerados de forma conjunta. A Igreja tem uma riqueza de experiências em suas comunidades, em sua reflexão e ação que deve ser compartilhada em uma escala maior, sem deixar de reconhecer a cumplicidade que ela tem tido em muitas ocasiões com a destruição do ambiente e sua aliança com os poderosos contra os pobres.

IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?

Guillermo Kerber - Em Conferências como a Rio+20 se pode ver outra contribuição específica das igrejas: vincular o que está acontecendo nas comunidades com a discussão e negociação internacional. A participação das igrejas não tem sentido em reuniões da ONU se não for para transmitir as dores, as esperanças, os anseios e as soluções que as comunidades podem trazer às crises (ecológica, econômica, financeira, moral, espiritual) nas quais estamos imersos. Muitas vezes o que acontece quando exercemos um trabalho diante das Nações Unidas em nome das igrejas é que nos sentimos frustrados pela falta de resultados, pela insensibilidade de alguns governos. A Cúpula dos Povos tem sido, para mim, a oportunidade, por exemplo, de discutir horas com um grupo de jovens de igrejas de vários países da América Latina sobre suas expectativas, críticas, dúvidas e propostas. Tem sido um estímulo, um tempo de graça, de aprendizagem e de partilha que alimenta nosso trabalho que tenta humildemente expressar a vocação profética das igrejas diante das instâncias governamentais e intergovernamentais.

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