terça-feira, 31 de julho de 2012

Salvação


Por Caetano Veloso

Jorge Amado mostra o Brasil agindo através de uma Bahia mítica

Uma das maiores emoções da minha vida foi causada pelas palavras de Mia Couto, o escritor moçambicano, sobre a importância de Jorge Amado na formação da literatura africana de língua portuguesa. Ele (que tem um irmão que se chama Jorge e outro, Amado) descreveu o impacto que teve sobre jovens africanos de uma geração anterior à sua o mundo que se move nas páginas do escritor baiano. Faz pouco, um amigo americano, ao ouvir-me contar essa história, disse-me que a presença de Jorge na literatura da África não se restringe ao mundo lusófono, as fabulações e figuras baianas, traduzidas para o inglês e o francês, tendo entrado no imaginário de autores nigerianos e marfinenses. Seja como for, o comentário de Mia me levara de volta a uma ideia poética que me inspira para atos e interpretações de atos da vida: a de que o uma das missões (talvez a principal missão) do Brasil é salvar a África.
Cheguei a essa formulação partindo de conversas que tive com o professor Agostinho da Silva, o maravilhoso português que, fugindo à perseguição salazarista, veio para o Brasil e, depois de estadas consequentes em Santa Catarina e na Paraíba, foi parar na Bahia. Ele costumava dizer que “Portugal já civilizou Ásia, África e América: falta civilizar Europa”. Eu adorava o desaforo. Agostinho tinha saído da Bahia e ido para Brasília (onde, ao lado de Darcy Ribeiro e outros, tentou fazer da UnB um laboratório civilizador, até que o golpe de 1964 destruiu as esperanças).
Ouvi uma palestra que ele fez, convidando voluntários para um trabalho de recuperação cultural da área de Cacheira e São Félix (nunca me esquecerei de ele dizendo que quem quisesse engajar-se no programa que ele propunha poderia — talvez de fato devesse — sentir angústia, nunca tédio). Mas só vim a conversar com ele quando eu já estava no exílio. Roberto Pinho fez a ponte, e fui vê-lo em Lisboa. Fui tímido e lacônico, mas ele disse a Roberto que eu pensava bem. Anos depois, voltei a vê-lo, na mesma cidade. Eu tinha voltado da Nigéria e da Costa do Marfim e sentia-me desolado: “Aquilo parece não ter futuro, professor”, eu disse. E ele: “E não tem. Por isso mesmo temos de inventar um”. Acho que não ouvi a frase “o Brasil salvará a África” de sua boca. Possivelmente eu a inventei a partir de várias coisas que li ou ouvi dele. A ideia amadureceu com o pensamento de que o Brasil tem a maior população negra fora do continente africano, importou mais escravos negros do que qualquer outro país das Américas e foi o último entre estes a abolir a escravidão: a dívida é demasiado pesada, nada menos do que uma redenção total pode estar à altura. Sou baiano, mulato, cresci em meio a uma maioria de negros. Gostei de “Mar Morto” quando ainda era menino, e até hoje o livro me toca como um longo poema romântico em prosa. Mas, já adulto e descobridor solitário de Clarice Lispector (eu tinha a impressão de que ninguém mais lia a revista “Senhor”, que Naum Sirotski, Bea Feitler e Paulo Francis eram anjos e que Clarice, Rosa e João Cabral me tinham sido revelados, em segredo, por eles, através do meu angelical irmão Rodrigo, numa tarde de Santo Amaro), pesava-me mais a posição oficializada pelo partido comunista internacional da importância dos livros de Jorge do que sua força imediata.
Mesmo assim, li “A morte e a morte de Quincas Berro d’Água com prazer admirado — e amei “Tenda dos milagres”, com sua versão hiperbólica da democracia racial. A fala de Mia Couto, anos depois, à luz das lembranças de Agostinho, pôs a força dos escritos de Jorge acima da reputação de realismo socialista com cores tropicais. Quando topei escrever “Verdade tropical”, João Ubaldo me aconselhou a falar com um agente literário americano que lhe tinha sido apresentado por Jorge. Esse agente é algo difícil de ser imaginado por um brasileiro: um comunista americano. Ele amava a literatura de Jorge enquanto este era comunista — e deplorava que Amado tivesse renegado “Subterrâneos da liberdade” e “A Albânia é uma festa”. Não acho nenhuma graça em Zizek ter um retrato de Stálin na sala. Mas uma vez ouvi, com fascinado encanto, Lina Bardi, já aos 80, dizer que gostava de Stálin e o defenderia de quem quisesse desqualificar a ideia comunista por causa dele. Nos 100 anos de seu nascimento, com a multitudinária galeria de personagens de “Gabriela” de novo nas telas das TVs do Brasil, vejo em Jorge a concretização de algo muito acima de defesas de Stálin (ou de ACM), com ou sem charme, ou mesmo de uma ultrapassagem de tal defesa. Vejo a concretização do incrível: o Brasil efetivamente agindo, através da Bahia mítica de um profeta feliz, na salvação do Continente Negro.

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