quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A metamorfose do Lulismo

Em novo livro, o ex-porta-voz de Lula afirma que o PT trocou um reformismo "forte" por um "fraco", com mudanças sociais mais lentas
André Singer - Devido ao retardo secular do Brasil, havia a expectativa de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao ser eleito em 2002 por partido de orientação socialista, tomasse medidas para provocar rápida contração do fosso social, mesmo que ao preço de haver confronto político. Tratar-se-ia da adoção do que poderíamos chamar de "reformismo forte": "intensa redistribuição de renda num país obscenamente desigual", nas palavras de Francisco de Oliveira (sociólogo, mn dos fundadores do PT, hoje filiado ao PSOL ).
Reconheça-se que a plataforma"reformista forte"era a perspectiva original do PT. Nas propostas do partido até 2001, podem-se encontrar diversas indicações do que seria feito caso a alma do Sion (referência ao Colégio Nossa Senhora de Sion, onde houve a reunião de fundação do PT em 1980) tivesse prevalecido no governo Lula.
Desde a garantia do trabalho agrícola por meio da distribuição de terras até a tributação do patrimônio das grandes empresas e fortunas para criar um Fundo Nacional de Solidariedade que financiasse projetos apresentados por organizaçoes comunitárias, há um conjunto de itens que passam pela diminuição da jornada de trabalho para quarenta horas sem corte de salários, criação de Programa de Garantia de Renda Mínima, revisão das privatizações, que desenham a perspectiva de mudanças fortes.
Era clara a referência histórica desse programa. No texto de 1994, a tributação emergencial sobre o patrimônio era comparada ao que "foi feito na maioria dos países da Europa no segundo apósguerra". O fato de uma proposta como essa ressurgir meio século depois na plataforma de um partido da periferia capitalista mostra o tipo de mudança que se tinha em mente."Os anos de guerra proporcionaram uma ética de coletivismo que ressoou durante outros três decênios", diz Geoff Eley (historiador britânico). Aquele foi o momento em que a redução da desigualdade evoluiu por meio da implantação do Estado de bem-estar social na Europa e no Reino Unido. Na formulação original do PT, o partido estava destinado a produzir análogas transformações estruturais no Brasil.
A política de ampliação de direitos universais com vistas à veloz diminuição da desigualdade deveria ser impulsionada, na mesma visão, por meio de intensa mobilização popular. A organização de base teria de substituir a comoção igualitária causada pela guerra na Europa como impulsionadora da ruptura brasileira. A convicção sobre o caminho a trilhar soava tão firme que houve quem se preparasse para, desde o governo, construir o que seriam os esteios do "poder popular". Frei Betto relata que, em 2003, o Fome Zero implantara "comitês gestores"em quase 2.400 municípios. Esses comitês, compostos de representantes da sociedade civil organizada local, poderiam ter sido a fonte de mobilização por baixo para alterar a correlação de forças e abrir o caminho a um processo acelerado de redução da desigualdade.
Com o lançamento do Bolsa Família, em setembro de 2003, em que o cartão de benefício passava por convênio entre o governo federal e as prefeituras, os comitês gestores começaram, entretanto, a perder função. A proposta de auto-organização para a luta política de classes, que estava no âmago dos grupos que formaram o PT na década democrática (197888), não foi assumida pelo governo Lula.
As condições para o programa de combate à pobreza viriam da neutralização do capital por meio de concessões, não do confronto. A manutenção da tríade juros altos, superávits primários, câmbio flutuante faria o papel de acalmar o capital. De outro lado, a simpatia passiva dos trabalhadores, para quem a ativação do mercado interno e a recuperação domercado de trabalho representavam benefícios reais, garantiu a paz necessária para não haver radicalização. Após o "mensalão" e a emergência do lulismo, sobretudo no segundo mandato, com sustentação social própria formada pelos votos do subproletariado, Lula pôde implantar a fórmula "ordem e mudança" com maior liberdade e resultados melhores.
O projeto de combate à pobreza acabou por se firmar sobre quatro pilares: transferência de renda para os mais pobres, ampliação do crédito, valorização do salário mínimo, tudo isso resultando em aumento do emprego formal. Se discernirmos com isenção, perceberemos que são, de forma atenuada, as mesmas propostas do "reformismo forte", porém em versão homeopática, diluídas em alta dose de excipiente, para não causar confronto.
O Bolsa Família nada mais é que o primeiro passo do Programa de Garantia de Renda Mínima. O texto de 1994 do PT previa que o programa da renda mínima "poderá ser introduzido gradualmente, de forma compatível com as finanças públicas, das regiões mais pobres para as mais ricas, iniciando-se pelos cidadãos que detêm pátrio poder sobre osmenores em idade escolar". As semelhanças com o Bolsa Família são óbvias.
Na área financeira, também há semelhanças. A expansão do crédito imobiliário e do crédito rural; o aprimoramento dos bancos públicos para que se constituíssem em "instrumentos efetivos de financiamento à produção"; o fortalecimento das instituições de crédito para apoiar as micro, pequenas e médias empresas; e mesmo a instituição de fundo que financiasse projetos sociais foram, de algum modo, propostas constantes do projeto original (1994) e contempladas na importante expansão do crédito que ocorreu sob Lula, de R$ 381 milhões em 2003 para R$ 1,4 trilhão no começo de 2010, segundo dados do governo. O que não aconteceu foi a tributação de fortunas ou reforma tributária que tornasse o imposto mais direto e progressivo ou o condicionamento dos empréstimos às empresas à manutenção e aumento do nível de emprego, como estava previsto no documento de 1994.
Quanto à valorização do salário mínimo, tratase de bandeira histórica do reformismo forte noBrasil, aparecendo na redação de 1994 como proposta de "elevação gradual e permanente", para alcançar a meta de "dobrar o seu valor atual no menor prazo possível" e, no período subsequente, atingir o nível apontado pelo Dieese. O governo Lula, a partir de 2005, promoveu a gradual elevação do salário mínimo, chegando a um valor real 50% maior em 2010 comparado a 2002. Mais que isso, em fevereiro de 2011, o Congresso aprovou projeto do Executivo fixando uma política pública de valorização do mínimo: o aumento real do salário mínimo entre 2012 e 2015 se dará com referência à variação do PIB dos dois anos anteriores. Em outras palavras, foram garantidos aumentos reais, desde que a economia cresça, até pelo menos metade da década. Mas, a seguir no ritmo anterior, o valor do salário mínimo deverá alcançar o dobro do que era em 2002 apenas no fim dos anos 2010. E, mesmo assim, estará longe do indicado pelo Dieese: R$ 2.227,53 em dezembro de 2010 (quando o salário mínimo em vigor era de R$ 510, cerca de 23% do que deveria ser segundo o Dieese). O destino do salário mínimo no lulismo pode ser tomado como outro paradigma do reformismo fraco. Para atingir o valor do Dieese, meta do Sion, o reformismo fraco adotado no Brasil levará ao menos duas décadas.
De maneira semelhante, "o direito ao trabalho para todos", item fundamental, foi contemplado, porém deixando de lado os aspectos radicais. As diretrizes de 1994 propunham uma "ampla mobilização nacional"em torno da questão. Para chegar à meta, sugeriam-se a criação de postos pela ampliação de serviços como saúde e educação, investimento público na área de infraestrutura econômica e social,redução da jornada de trabalho, condicionamento do financiamento à manutenção e aumento do nível de emprego e apoio a cooperativas e microempresas
O PAC aumentou o emprego na construção civil por meio de obras de infraestrutura "econômica e social" (sobretudo depois de criado o Programa Minha Casa Minha Vida), como previa o documento de 1994. A redução do desemprego a 5,3%, em dezembro de 2010, foi, em certa medida, o resultado dessas políticas, pois a construção civil constituiuelemento essencial na geração de empregos após a crise de 2008. O primeiro ano do governo Dilma deu continuidade a essa orientação, com a geração de 1,9 milhão de vagas, terminando com um desemprego de 4,7% em dezembro de 2011. A pesquisa Seade/ Dieese, contudo, apontava quase o dobro de desemprego (9,1%) na mesma data, em parte por incluir como desempregados os que estão em trabalhos precarios e os que, sem emprego, nao procuraramcolocação no último mês. A proposta do reformismo forte era uma redução da jornada de trabalho, acompanhada da proibição de as empresas diminuírem a folha de pagamentos, resultando em absorção rápida da parcela ainda não formalizada da população economicamente ativa, contribuindo ao mesmo tempo para a desprecarização de setores do próprio trabalho formal, como ocorre na construção civil. Mas isso está fora do figurino do reformismo fraco.
Ao tomar das propostas originais do PT aquilo que não implicava enfrentar o capital como seria o caso da tributação das fortunas, revisão das privatizações, redução da jornada de trabalho, desapropriação de latifúndios ou negociação de preços por meio dos fóruns das cadeias produtivas, o lulismo manteve o rumo geral das reformas previstas, não obstante aplicando-as de forma muito lenta. Será o reformismo fraco suficiente para dar conta dos impasses legados pela formação do país? Do ponto de vista da redução da pobreza monetária absoluta, houve um incremento de 2% do PIB no valor das transferências de renda às famílias, com resultados palpáveis. Dados do Ipea mostram diminuição consistente do número de brasileiros abaixo da linha de pobreza (monetária), de 36% para 23% entre 2003 e2008, projetando uma virtual erradicação da pobreza (monetária) até o final da década de 2010.
Trata-se, porém, de mais que unicamente acesso a recursos financeiros. Por meio de mecanismos diversos, dos quais o Bolsa Família é integrante, junto com a segurança alimentar, a expansão do crédito, a valorização do salário mínimo e o aumento doinvestimento público, sobretudo na construção civil, e a geração de empregos, em particular no Nordeste, foram libertadas energias sociais. A multiplicação de iniciativas "moleculares" para a superação da pobreza aponta para mudanças estruturais. Por outro lado, se olharmos a pobreza do ângulo de Amartya Sen (economista indiano, prêmio Nobel de Economia de 1998) e José E li daVeiga (economista, professor da Universidade de São Paulo),como"privação de capacidades básicas", identificaremos outra vez a lentidão do lulismo. Considerado, por exemplo, o acesso à rede de esgoto como índice de pobreza, o reformismo fraco adiará por mais uma geração (cerca de 25 anos) o momento em que todos os brasileiros possam usufruir esse serviço básico e, portanto, deixar para trás a pobreza, já que o número de domicílios conectados à rede passou de 34% para 46% entre 2000 e 2008, projetando longo caminho à frente até a universalização de tal direito.
O mesmo vale para a diminuição da desigualdade. O reformismo fraco foi capaz de combater a iniquidade no Brasil num ritmo comparável ao da implantação do Estado de bem-estar na Inglaterra e nos EUA. Porém o ponto de partida brasileiro era tão mais baixo que o dos referidos países que seria necessário sustentar as políticas reformistas por mais de duas décadas até alcançarmos um padrão de vida "similar"entre nós, como na imagem rooseveltiana de Paul Krugman (economista americano, prêmio Nobel de Economia de 2008). O que estamos vendo, portanto, é um ciclo reformista de redução da pobreza e da desigualdade, porém um ciclo lento, levando em consideração que a pobreza e a desigualdade eram e continuam sendo imensas no Brasil. Isso explica o aspecto ideológico do imaginário do New Deal que se instalou no país, pois não está no horizonte real do reformismo fraco produzir, num "curto espaço de alguns anos", um padrão de vida geral "decente" e "similar".

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