quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Uma proposta para fugir do impasse sobre os divorciados recasados

Nós não esperávamos que ele atuasse nessa área. O ex-prior provincial dos Dominicanos da França, bispo de Oran, naArgélia, Jean-Paul Vesco (foto) é mais conhecido pela sua atuação no campo inter-religioso. Mas ele também trabalhou como advogado durante muitos anos. Ele propõe uma aproximação teológica e jurídica à questão dos divorciados recasados.
A entrevista é de Marie-Lucile Kubacki e publicada no sítio da revista francesa La Vie.

Eis a entrevista.

Por que você decidiu entrar no debate sobre os divorciados recasados?
Este é uma revolta interior muito antiga diante do enorme sofrimento de muitas pessoas. Elas não se reconhecem naquilo que a Igreja diz sobre seu estado de vida. Enquanto muitos se vão na ponta dos pés e não batizam seus filhos. Minha revolta também vem do fato de que isso não é apenas uma violência contra as pessoas, mas também contra os fundamentos da nossa fé: a aliança, a misericórdia de Deus e o sacramento da reconciliação, o sacramento da Eucaristia. Eu acredito que é teologicamente possível afirmar, ao mesmo tempo, a indissolubilidade de qualquer verdadeiro amor conjugal, a unicidade do matrimônio sacramental e a possibilidade de um perdão em caso de fracasso do que constitui uma das mais belas, mas também das mais perigosas aventuras humanas, o casamento para toda a vida.

Qual é a "falta" dos divorciados recasados?
É o segundo "sim". Onde quer que houve união sacramental, obtendo uma segunda união, é considerado adultério. Como se trata de um pecado grave, para receber a Eucaristia é preciso confessar-se e ter recebido a absolvição. Para isso, os divorciados recasados devem tomar a resolução de deixar seu "estado de pecado". Concretamente, isto significa que eles precisam romper com seu segundo cônjuge, com quem reconstruíram sua vida e, talvez, tiveram filhos. Ou então "viver como irmão e irmã", com toda a ambiguidade dessa expressão. Eles são colocados diante de uma decisão impossível, simplesmente porque a sua segunda união tornou-se, também ela, indissolúvel.

É o que se chama de persistência no "estado de pecado"...
Uma pessoa que teve um fracasso do qual está pronta para assumir uma parte de responsabilidade, que reconstruiu sua vida e que no dia a dia vive um relacionamento de fidelidade não pode se reconhecer em situação de adultério. O adultério, na realidade, é o fato de ter um relacionamento com duas pessoas ao mesmo tempo. Este não é o caso dos divorciados recasados.

Mas Jesus diz no Evangelho: "O que Deus uniu o homem não separe" (Mc 10, 9)!
O sacramento do matrimônio é único e assim deve permanecer. Mas é importante distinguir entre unicidade e indissolubilidade. Não é o sacramento que torna o casamento indissolúvel; é a indissolubilidade de qualquer relação de amor verdadeiro que torna possível este sacramento. Jesus não é o inventor do casamento indissolúvel. Ele não o decretou, mas ele revelou a santidade de todo amor humano verdadeiro desde a primeira união do homem e da mulher. É assim que a Igreja reconhece a natureza indissolúvel do casamento civil de duas não batizadas. A indissolubilidade não esgota o sentido do matrimônio sacramental, que é o reconhecimento por parte dos cônjuges de que Deus está presente no coração do seu amor. É fazer do casamento uma consagração.

Que solução você propõe para sair dessa noção de "persistência em um estado de pecado" sem comprometer a unicidade e indissolubilidade do sacramento da união?
A posição da Igreja sobre o casamento parece muitas vezes excessivamente jurídica. Parece-me, ao contrário, que, paradoxalmente, ela peca por uma carência na fundamentação jurídica. Todos os grandes sistemas de direito fazem uma distinção fundamental entre infração instantânea e continuada. A infração instantânea, como o homicídio, resulta de um único ato de vontade que entranha consequências definitivas contra as quais a vontade do próprio assassino não pode nada. A infração continuada, como o roubo com receptação, supõe que o autor da agressão prolonga a infração por um ato repetido da vontade. Ele poderia, a qualquer momento, devolver o objeto roubado, enquanto o assassino não pode devolver a vida que ele tirou. Uma vez que esta distinção não é feita no direito canônico, a questão é saber se o fato de contrair uma segunda união após o fracasso de um casamento sacramental pode ser comparado analogicamente a uma infração instantânea ou a uma infração continuada.

E qual é a sua resposta?
A posição atual da Igreja equipara implicitamente uma segunda união a uma infração continuada, na qual as pessoas permanecem por uma reiterada manifestação da vontade. A qualquer momento, elas poderiam interromper a sua união. Ela ignora a situação definitiva que a indissolubilidade do seu amor criou. Eu penso que a analogia com a infração instantânea é mais justa. De fato, assim como o assassinato criou uma situação definitiva de morte, a segunda união cria uma situação definitiva de vida.

Qual é o interesse desta distinção?
Se a Igreja tomou conhecimento da situação definitiva nascida da vontade de entrar em uma segunda relação de aliança, ela se poderia permitir uma palavra de verdade, e se for o caso do perdão, sobre o "sim" da segunda união sem ter de exigir de antemão uma impossível separação. Portanto, ela permitiria assim às pessoas defrontar-se com a verdade sobre o seu casamento e com as razões do seu fracasso. É mais fácil ter um olhar sereno sobre o seu passado, em vez de ocultá-lo, onde um futuro reconciliado é possível. Esta distinção, fundada sobre a consideração das consequências do caráter indissolúvel de todo verdadeiro amor conjugal, abre o caminho para uma necessária pastoral da reconciliação, cujas modalidades ainda precisam ser inventadas. E isso sem que sejam relativizadas a unicidade e o valor inefável do matrimônio sacramental católico.
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O artigo, em francês, de Jean-Paul Vesco, bispo de Oran, sob o título “Pour en finir avec la notion de persistance obstinée dans un état de péché grave”, pode ser lido clicando aqui

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