quarta-feira, 21 de outubro de 2015

"A Igreja sabe a estrada." Hünermann e Sequeri para a última semana do Sínodo

A doutrina não está "em discussão", mas "em reformulação". Uma disciplina reformada será um reflexo fiel e eficaz daquela, cuja eficácia não pode mais sofrer pausas, hesitações ou adiamentos: a vocação pastoral da experiência cristã do matrimônio e da família não pode mais esperar.
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua.

O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 19-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.

Em vista da última parte do percurso do Sínodo, pode ser útil pôr em relação a elaboração do documento final – mediante todos os procedimentos necessários do caso – com dois textos produzidos por renomados teólogos nos últimos meses. Quase um "conselho de leitura" para acompanhar com maior amplitude e profundidade o trabalho que espera pelos bispos nos próximos dias.
Gostaria de propor para a reflexão algumas das afirmações principais que se encontram nestes dois importantes textos de Peter Hünermann e Pierangelo Sequeri.

Hünermann e os "100 anos de inquietação" sobre o matrimônio
O primeiro texto – apresentado pelo Prof. Hünermann no contexto de um congresso organizado pela Intams [Academia Internacional para a Espiritualidade Marital, na sigla em inglês], em Roma, na segunda semana de setembro – acaba de ser publicado pela revista Il Regno (8/2015, p. 553-560) e propõe uma poderosa releitura da tradição católica sobre o matrimônio do último século.
O documento em torno do qual gira a reflexão é a encíclicaCasti Connubii, de Pio XI, que é considerada quase como o símbolo de uma abordagem redutiva e rígida à tradição sobre o matrimônio. Esse texto, de 1930, profundamente influenciado pela configuração do Código de Direito Canônico de 1917, orienta toda a reflexão magisterial até hoje, tendo condicionado profundamente também a Gaudium et spes e a Humanae vitae.
Nesse texto, segundo Hünermann, encontramos a raiz de boa parte das nossas dificuldades atuais. A encíclica seria uma "resposta" a um artigo de M. Laros, que fazia as três perguntas fundamentais do nosso tempo: o significado e a essência da comunidade conjugal, o divórcio e a limitação do número dos filhos.
O título da encíclica prometia uma abordagem abrangente: "Sobre o matrimônio cristão consideradas as condições, as necessidades, os erros e os vícios atuais da família e da sociedade". Na realidade, o texto prossegue sem qualquer debate com todas essas dimensões:
"O princípio hermenêutico com base no qual a Casti Connubii se interpretam os textos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento diz: Deus criou o matrimônio como criador do homem e da mulher e, ao mesmo tempo, regulou-o plenamente mediante leis divinas, anunciadas por Deus através da natureza ou Jesus Cristo. Decorre daí um fundamentalismo teológico, moldado por um pensamento jurídico, que apresenta os fundamentos bíblicos de um modo grosseiramente simplificado" (p. 556).
Mas, já nos anos 1930, estava nascendo uma teologia moral diferente, não condicionado por essa configuração fundamentalista e jurídica, que ainda hoje faz sentir a sua influência no debate sinodal. Especialmente depois daHumanae vitae, inicia um grande trabalho teológico, para repensar a tradição da teologia matrimonial sobre bases mais adequadas. Em uma longa análise do desenvolvimento de tal teologia de nova configuração, Hünermann afirma:
"O vínculo indissolúvel, que pertence à comunidade sexual natural, certamente é elevado por Cristo, ligado com a graça, mas não transformado em um 'ostensório de Jesus e da sua Igreja'" (p. 560).
Em substância, uma releitura da tradição anterior e posterior a Casti Connubii é capaz de fornecer boas perspectivas para sair da lógica "fundamentalista" e "ontológica", com que aquela encíclica tentou se opor frontalmente ao mundo moderno.
A tríade fundamental que identifica as questões em aberto sobre o matrimônio (unidade, indissolubilidade e fecundidade), assumem na resposta elaborada pela teologia pós-conciliar – retomando também algumas intuições deSão Tomás de Aquino – uma profundidade completamente diferente da abordagem inaugurada pela encíclica de Pio XI:
"Se compararmos as afirmações aqui levantadas sobre matrimônio e família como comunidade sexual natural com a Casti Connubii, constata-se, acima de tudo, o abandono do princípio basilar fundamentalista desta última, expressado no conceito da 'lex naturalis', segundo o qual Deus mesmo instituiu o matrimônio e, assim, em relação à sua forma fundamental, claramente o dotou, de modo que ao homem não resta senão aceitar passivamente essa instituição do matrimônio e da família assim dotada por Deus" (p. 569).
Se considerarmos que essa abordagem teve uma influência ainda muito forte sobre o Concílio Vaticano II e sobre aHumanae vitae, e continua claramente perceptível também na Familiaris consortio, compreendemos qual é o trabalho de repensamento e de "conversão" que o Sínodo deve, ao menos, configurar e guiar rumo a uma reformulação abrangente da disciplina do matrimônio e da família em relação ao Evangelho.
Sequeri e uma "hermenêutica sapiencial da tradição"
O segundo texto, que constitui a "síntese geral" do belo livroFamiglia e Chiesa. Un legame indissolubile [Família e Igreja. Um vínculo indissolúvel] (Ed. LEV, 2015, p. 475-490), apresenta de modo profundo e amplo algumas considerações decisivas, a respeito das mesmas temáticas propostas pela reflexão de Hünermann.
Em primeiro lugar, esclarece-se que o Sínodo se move sobre o tema do matrimônio/família, no qual:
"Há interrogações reais a serem aprofundadas e questões novas a serem respondidas (…) formulações que devem ser desenvolvidas com maior precisão, disposições que devem ser reconduzidas a uma melhor coerência, atitudes que devem ser exercidas com maior eficácia" (p. 477).
Ressaltada a exigência de um debate mais estreito entre as diversas disciplinas teológicas, no campo do diálogo entre direito canônico e dogmática, afirma-se que:
"A doutrina canônica não pode ser forçada a substituir a instrução teológica da fé revelada e a definir o horizonte mais amplo da sua elaboração pastoral" (p. 481).
No que diz respeito, depois, ao debate entre moral e pastoral Sequeri afirma:
"Por isso, seria totalmente surpreendente – e, na verdade, motivo de escândalo – se a fraqueza e o pecado do homem induzissem a Igreja à impotência e à resignação da perda dos seus filhos e filhas. No momento em que eles são traídos, abandonados, feridos e até mesmo aprisionados na sua culpa e incapazes de reparar o fracasso, a Igreja não se isenta do seu sincero pedido de compreensão, de proximidade, de resgate. A Igreja sabe a estrada. A Igreja a encontra" (p. 485).
De modo mais geral, Sequeri enfatiza a utilidade preciosa, mas também o limite intrínseco, de uma abordagem confiada apenas ao conceito e à lei:
"O logos e o nomos, o conceito e a norma, trazem à economia da mediação a vantagem da precisão e do juízo, sem o qual é simplesmente impossível afirmar e discernir a respeito do verdadeiro e do falso, do bem e do mal. A sua parte fraca, porém, é a inevitável inclinação para evitar a relação de qualidade moral com a concretude da consciência e com a historicidade da vivência (…) a função integrativa da hermenêutica sapiencial da vida é precisamente o lugar onde é honrada a tarefa da necessária conciliação" (p. 487).
E depois acrescenta de modo significativo:
"A atual complexidade da cultura e do costume, quanto às relações com a dignidade pessoal do homem e da mulher, a natureza relacional da sexualidade e da geração, o relevo eclesial e social do matrimônio e da família, interpelam irrefutavelmente de modo novo essa função integrativa da hermenêutica sapiencial da Igreja, em acordo coerente com o rigor e a eficácia da sua mediação doutrinal da Palavra de Deus. A pastoral é o conjunto dessa verdade sinfônica da fé, que move a história frequentando-a, e não dissociando-se dela: compreensão e reformulação, linguagem e práxis, verificação e estilo" (p. 487)
Um desejo eclesial e cultural
Ambos os textos são de grande utilidade. Se o primeiro revela de modo claro e firme todos os condicionamentos que a "doutrina matrimonial" sofreu no último século, o segundo relê a mesma história como premissa para uma virada que espera pela Igreja nas próximas décadas.
Mas não se pode mais "adiar" as conversões. Os resultados deste Sínodo – seja em termos de "proposições", seja com a "exortação apostólica" que deve surgir dele – já poderão marcar essa passagem de estilo pastoral e de método teológico.
A doutrina não está "em discussão", mas "em reformulação". Uma disciplina reformada será um reflexo fiel e eficaz daquela, cuja eficácia não pode mais sofrer pausas, hesitações ou adiamentos: a vocação pastoral da experiência cristã do matrimônio e da família não pode mais esperar.
Mas a espera não é só da Igreja, mas também da cultura comum. Oferecer uma mediação não fundamentalista e não ingênua da inexaurível força da comunhão conjugal, que também saiba conservar em seu interior a possibilidade de sua crise, é uma legítima expectativa não só das consciências crentes, mas também das consciência tout-court.

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