quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Saudades de uma imortal

*Jane Hilda, julho 2015 - Um espectro de cordão umbilical me liga à minha mãe. É! Isso mesmo! Uma espécie de lembrança insistente, um feixe de luz, ou uma conexão de pura energia a ligar uma a outra. Trata-se destes mistérios que não consigo explicar. Não estou falando de ciência, pois que o cordão, aquele cordão pelo qual ela me alimentou durante todo o período da gestação, aquele foi rompido no instante do meu nascimento. Pode ser algo espiritual: alguns espíritos se encontram e ficam próximos em várias encarnações (espero continuar próxima dela por muitas vidas). Mas, enfim. Mistérios são mistérios. Nesta vida, não importa quantas vezes tenhamos ficado longe uma da outra porque a nossa história quis assim, não importa quantas vezes tenhamos discordado uma da outra, quantas vezes tenhamos discutido (ela achava que não adiantava contra-argumentar frente à minha teimosia...o que ela não sabia é que tudo que me dizia ecoava muito fortemente em mim). Não importa quantas vezes eu não tenha sido a melhor das filhas. Nada disso importa. Não importa porque mãe ama incondicionalmente seus filhos! E então, ela me amava! Não importa porque hoje sei que ela tinha razão nas vezes que me disse não! Não importa porque sei o quanto tenho uma admiração profunda por ela, porque a amo e amarei durante toda minha existência. 
Saudade não é um sentimento fácil de sentir. Por um lado machuca muito a dor causada pelo seu desencarnamento, em 25 de julho p.p., pelo distanciamento de sua matéria, do seu corpo agora inexistente, que ficou sepultado no mausoléu da família - local onde em vida, por muitas vezes, ela esteve a cultuar os nossos antepassados - no cemitério da Vitória ( sete palmos do chão - destino inexorável de todos nós! ) ; por outro lado, este mesmo sentimento de saudade acaricia o meu coração pelas doces lembranças daquele Espírito em forma de Ser Humano ( “gente fina, elegante, sincera”). E será esta mesma saudade que a eternizará em meu coração. Mas que saudade, se ela está bem viva em mim? Basta ligar o pensamento para vir à minha frente aquele sorriso lindo, aquele ar inteligente de pessoa culta, intelectual, bem informada e preocupadíssima com todos os problemas do mundo. Mulher de postura mansa, porém, absolutamente questionadora, bem típica dos livres pensadores. E com grande sensibilidade artística! Uma mente privilegiada.
Assim era Janete Mendonça Badaró. Inesquecível prá mim! Trago na memória alguns momentos especiais que jamais se apagarão. Gostava de vê-la discursar na Academia de Letras de Ilhéus. Nas históricas salas do Centro Comercial de Ilhéus e da Casa Jorge Amado, ela falava com a propriedade daqueles que estudam com afinco os temas que se propõe abordar. E eram invariavelmente discursos poéticos, claro! Do mesmo jeito discursava nas sessões festivas da OAB/Ba Subseção Ilhéus no Forum Epaminondas Berbert de Castro. Por várias vezes integrou as diretorias daquelas duas entidades, especialmente à época em que as presidiaram os saudosos e ilustres advogados e acadêmicos Francolino Neto e Ariston Cardoso. Aliás, ela não precisava me chamar duas vezes para acompanhá-la nestas programações. Ao primeiro chamado eu já estava pronta. Ela quem me proporcionou aproximação com grandes mundos: o Direito, as Letras, a imprensa, a arte! Valendo ressaltar que, enquanto eu passeio pela superfície das coisas, ela mergulhava em grandes profundidades, e de lá pegava impulso para fazer grandes voos por entre as galáxias...sim, seus escritos mostram que por vezes revolvia os porões dos sentimentos humanos, ao tempo que, outras vezes circulava no infinito universo em busca de decifrar os mistérios da existência. 
Lembro ainda das belas cantorias nos tempos do karaokê do bar cultural "Caderno 2", pelos idos de 80, – que ela fazia questão de organizar e “comandar”- ali se revelaram alguns talentos que hoje integram o time dos melhores da música regional. Ela mesma gostava de abrir a noite, com “Eu seu que vou te amar”, de Vinicius de Morais, e outras pérolas da Música Popular Brasileira. Como cantava lindo! Mulher de muitos talentos: advogada, escritora, poeta, jornalista, artista plástica – pintava e desenhava muito bem. Quantas noites, passou debruçada em revisão de textos para o Ilhéus Jornal, Ilhéus Revista, Revista IR - órgãos de comunicação que fundou junto ao seu saudoso esposo, meu pai, Carlos Alberto Ramagem Badaró - e que ela dirigiu por mais de 20 anos, tendo feito história na imprensa regional: arte, cultura, turismo, política, literatura, economia, esporte, meio ambiente... Ah, um mundo encantador! Na redação, cheia de papéis, livros, revistas, recortes, fotos, fotolitos, textos originais, circulavam os intelectuais da cidade. Verdadeira oficina de iniciação para diversos profissionais de imprensa que atuam hoje na região. Foi a primeira militante dos direitos da mulher que eu conheci. Por tudo isso, não é somente pela condição de filha, meu desejo de reverenciá-la! 
Nascida em 16 de julho de 1935- dia em que, nas tradições católicas, se homenageia Nossa Senhora do Carmo-, filha de Ariston Bastos de Mendonça e Beatriz Neves de Mendonça. Ilheense, aposentada pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia, foi a primeira mulher a ingressar na Academia de Letras de Ilhéus, academia que fizeram parte também os escritores Jorge Amado e Adonias Filho. Bacharel em Direito e Letras. Dois livros lançados: "Momentos” e "Máscaras em Procissão" (este último, prefaciado por Adonias Filho, foi lindamente ilustrado por ela mesma!), além de participação em diversas coletâneas. Publicou crônicas e contos em jornais e revistas regionais. Seu nome é verbete em duas enciclopédias indicativas dos escritores baianos.. Por várias vezes recebeu em sua casa poetas, músicos, pessoas de teatro, professores, enfim, a fina intelectualidade, veteranos e emergentes, para saraus, encontros memoráveis onde se respirava arte e cultura de primeiríssima qualidade. Chegou também a ocupar o cargo de Chefe de Gabinete da Prefeitura Municipal de Ilhéus, pelos idos de 70. E com seu trabalho na imprensa divulgou bons feitos das gestões político-administrativas da cidade que tanto amava, assim como também criticou construtivamente todas as vezes que precisou. 
Enfim, Janete Badaró escreveu uma bela história em seus 80 anos de vida! Acima de tudo, urdiu a teia da união familiar, entrelaçando fios de ternura e amor no seu lar. Mãe de 5 filhos: Arilton Carlos, Jane kátia, Jane Suely, Carlos Alberto (Beto) e eu (Jane Hilda), avó e bisavó de muitos netos e bisnetos, genros e noras. De tudo que a encantava, sua família era o tesouro que mais prezava! Tenho alegria de tê-la como mãe! Minha musa! Uma referência na minha vida. Aos meus olhos foi uma mulher de vanguarda. Assim era a menininha de cachos dourados, da linha familiar do intendente Eustáquio Bastos, crescida numa das primeiras casas construídas em Ponta d’Areia (hoje av. Soares Lopes), criada tão carinhosamente pelo tio Milton Bastos de Mendonça (proprietário por muitas décadas da Lojas Portela, no Calçadão de Paranaguá) e as tias Elpha, Toinha, Nenem e Zulnara! Nos últimos anos de vida, já com a saúde necessitando de cuidados, recolheu-se de toda vida social e dedicou-se à leituras, e ao convívio familiar. Gostava muito de ler os grandes clássicos, filosofia, história das religiões, neurociências, história, textos sociológicos, ciências, etc. Sobre sua crença, bem, num dos seus textos, afirma: “... A natureza/ Deus é permanente...”. 
*Jane Hilda é advogada, professora do DCIJUR/UESC, jornalista e artista plástica



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