quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

A vida moral de Bergoglio

A Evangelli Gaudium não é um tratado de teologia moral. A Exortação Apostólica trata dos ensinamentos morais da Igreja no horizonte aberto pela “conversão pastoral” que o Papa Francisco sugeriu a todo o corpo eclesial. Contudo, as poucas alusões à dinâmica da vida moral que aparecem de maneira implícita no texto do Papa Bergoglio desestabilizam determinados estereótipos dominantes em muitas polêmicas culturais e midiáticas ao redor da Igreja e certos tópicos morais.
Com uma decisão muito eloquente, o Papa Francisco ocupa-se do argumento da comunicação. Segundo o Papa, nos processos comunicativos algumas questões que fazem parte do ensino moral da Igreja são, muitas vezes, tiradas “do contexto que lhes dá sentido”. O efeito é que a “a mensagem que anunciamos parece então identificada com tais aspectos secundários, que, apesar de serem relevantes, por si sozinhos não manifestam o coração da mensagem de Jesus Cristo”. Além disso, segundo o Pontífice, é necessário “ser realistas e não dar por suposto que os nossos interlocutores conhecem o horizonte completo daquilo que dizemos ou que eles podem relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho que lhe confere sentido, beleza e fascínio”.
Alguns destes ensinamentos e preceitos morais dos quais a Igreja se ocupa, acrescenta Bergoglio, compreendem-se melhor e são melhor apreciados somente vivendo a experiência da fé e da pertença à Igreja, “para além da clareza com que se possam compreender as razões e os argumentos”. Por isso, a pastoral “em chave missionária” prefigurada para toda a Igreja pelo atual sucessor de Pedro não cede à obsessão de transmitir “uma multidão de doutrinas que se tenta impor à força da insistência”.
O anúncio cristão enquanto tal, explica Bergoglio, tem um ritmo muito diferente para chegar a todos sem exceção, pois “concentra-se no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário. A proposta acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade, e assim torna-se mais convincente e radiante”.
E a referência ao que é “mais atrativo e ao mesmo tempo o mais necessário” não obscurece os ensinamentos morais da Igreja. O Papa Francisco cita Santo Tomás de Aquino e o Concílio Vaticano II: algumas verdades expressam “mais diretamente o coração do Evangelho” e o que resplandece acima de tudo é “a beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e ressuscitado”. Por isso, entre as verdades expressadas na doutrina católica, inclusive as morais, existe uma hierarquia, “já que o nexo delas com o fundamento da fé cristã é diferente”. Mas, justamente a relação das verdades individuais com o coração do anúncio cristão salva todas de cair no esquecimento. Cada verdade, pois, “entende-se melhor se a colocarmos em relação com a totalidade harmoniosa da mensagem cristã: e, neste contexto, todas as verdades têm a sua própria importância e iluminam-se reciprocamente”.
Além disso, já Santo Tomás, recorda o Papa Francisco, “destacava que os preceitos dados por Cristo e pelos Apóstolos ao Povo de Deus “são pouquíssimos”. O santo dominicano, citando Santo Agostinho, também indicava que “os preceitos adicionados posteriormente pela Igreja se devem exigir com moderação, para não tornar pesada a vida aos fiéis nem transformar a nossa religião numa escravidão, quando a misericórdia de Deus quis que fosse livre”.
E assim, libertar a comunicação eclesial de uma excessiva insistência sobre as questões morais não é uma tática para parecer mais moderno. Para Bergoglio, com esta orientação expressa-se inclusive o olhar próprio da fé cristã sobre os comportamentos morais. “A pregação moral cristã não é uma ética estóica, é mais do que uma ascese, não é uma mera filosofia prática nem um catálogo de pecados e erros. O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos”. Seu objetivo não é patrocinar um certo “dever ser”, ensinar um esforço de adesão a um código de comportamento.
O olhar cristão sobre o comportamento moral sempre reconheceu que na condição histórica concreta, marcada pelo pecado original, todos os homens estão feridos “in naturalibus” nas próprias faculdades naturais. Inclusive nos pronunciamentos doutrinais da Igreja, desde o Concílio de Cartago (de 418 d.C.) até o Concílio de Trento, desde o segundo Concílio de Orange (529 d.C.) até o Credo do Povo de Deus de Paulo VI, indicaram que não apenas a vontade do homem se vê debilitada, mas também sua inteligência foi ofuscada enquanto tal. Portanto, no longo prazo e na experiência concreta, com todos os condicionamentos, pode turvar-se (e, com efeito, se turva) o reconhecimento do que é naturalmente evidente. Como, por exemplo, a vocação da proteção da vida dos que estão por nascer. Diante da condição humana assim como é, o anúncio cristão nunca partiu do esforço por inculcar nas mentes dos homens ensinamentos morais auto-evidentes. Já São Paulo e Santo Agostinho reconheciam que inclusive a doutrina cristã, que é verdadeira, converte-se em algo estéril caso não se dá a “delectatio” nem a “dilectio”, isto é, o atrativo amoroso da graça. Muitos séculos depois, o Papa Francisco, citando o seu predecessor, repete que “a Igreja não cresce por proselitismo, mas ‘por atração’”.
Na aventura cristã, no princípio e em cada novo passo, procede-se e cresce-se pela atração no dom gratuito da misericórdia. Santo Tomás de Aquino, recorda Bergoglio na Evangelli Gaudium, ensinava que, com relação ao comportamento moral, “em si mesma, a misericórdia é a maior das virtudes”, porque “o elemento principal da Nova Lei é a graça do Espírito Santo, que se manifesta através da fé que opera pelo amor”, e porque “as obras de amor ao próximo são a manifestação externa mais perfeita da graça interior do Espírito”. A misericórdia, esse aliviar as misérias alheias, é característica de Deus: “é por isso que se diz que é próprio de Deus usar de misericórdia e é, sobretudo nisto, que se manifesta a sua onipotência”.
Em sua experiência de pastor que cuida das almas e de confessor, o Papa Francisco experimentou em muitas ocasiões que justamente a experiência de ser abraçados pela misericórdia e pelo perdão pode despertar nas consciências dos homens e das mulheres de hoje a percepção dos próprios limites, do mal, do pecado que endurece os corações, do bem que atrai e que dá felicidade. Como explicava Joseph Ratzinger em março de 2000, ao apresentar aos jornalistas os pronunciamentos jubilares sobre os “mea culpa” da Igreja, “me parece que somente o perdão, o fato do perdão, permite a franqueza para reconhecer o pecado. Além disso, a certeza de que Deus nos perdoa, nos renova, é constitutiva do Evangelho”. Hoje, o Papa Francisco expressa a mesma confiança na “medicina” da misericórdia, a única que pode curar e mudar também as vidas que parecem feridas. Por isso convida os pastores e todos os cristãos a “acompanhar com misericórdia e paciência as etapas possíveis de crescimento das pessoas que se vão construindo dia a dia”. É necessário respeitar os tempos do trabalho da graça, que se encarna nas circunstâncias concretas e não procede por abstrações rigoristas. Um coração verdadeiramente missionário, escreve o Bispo de Roma, nunca renuncia “ao bem possível”, “está consciente destas limitações, fazendo-se ‘fraco com os fracos’ (…) e tudo para todos (1 Cor 9, 22)”.
O olhar cristão sobre a vida moral brota da experiência gratuita da misericórdia. Os discursos sobre as questões éticas e morais que não têm isto em consideração, ou que, inclusive, maltratam a misericórdia definindo-a como “buonismo”, são alheios às dinâmicas próprias do movimento posto em marcha no mundo pelo cristianismo. E o mesmo acontece quando abusam das palavras cristãs e, às vezes, servem para fazer carreiras eclesiásticas. Nesses discursos, adverte o Papa Francisco na Evangelli Gaudium, “não estaremos propriamente anunciando o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas”. “Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso pior perigo”.

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