A Igreja Católica tenta evitar uma divisão em sua hierarquia em provável segundo turno nas eleições entre uma candidata nominalmente católica (Dilma) e uma evangélica (Marina). A diferença em relação à eleição passada é o novo papa.Francisco orientou os bispos do Brasil para que evitem um clima de confronto que contraponha a Igreja à defesa do Estado laico.
Esse tom deve prevalecer no debate da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com os candidatos, emAparecida (SP), no dia 16. Em 2010, os bispos da regional Sul-1 divulgaram um texto pedindo aos fiéis que não votassem em Dilma. A CNBB desautorizou o documento, mas o mal-estar ficou. Desta vez, a própria ala conservadora da Igreja demonstra cautela ao avaliar o cenário.
César Felício, jornal Valor - Diante da possibilidade de um segundo turno nas eleições presidenciais entre uma presidente nominalmente católica e uma evangélica, a Igreja Católica tenta evitar a divisão de sua hierarquia que marcou a entidade nas eleições de 2010.
A grande diferença em relação a eleição passada é a troca do comando no Vaticano. O papa Francisco orientou os bispos do Brasil, ainda no ano passado, a se envolverem no processo eleitoral, provocando os candidatos para a discussão dos temas de seu interesse, mas evitando um clima de confronto que contraponha a Igreja com a defesa do estado laico.
Este é o tom que deve prevalecer no debate da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) com os candidatos presidenciais em Aparecida (SP), no dia 16 para o qual a presidente Dilma Rousseff já confirmou presença. Também estarão Marina Silva (PSB), Aécio Neves (PSDB) e outros cinco candidatos menores.
Em 2010, a entidade também conseguiu reunir todos os postulantes em um encontro no mesmo formato, mas a estratégia de equilíbrio desandou quando bispos da seccional regional Sul-1 divulgaram um texto do então bispo de Guarulhos, dom Luiz Bergonzini (1936-2012), pedindo aos fiéis expressamente que não votassem em Dilma. Havia desconfiança de que a então candidata legalizasse o aborto, suposição que aumentou quando o governo apresentou o polêmico terceiro programa nacional de direitos humanos em 2009. A própria CNBB desautorizou o documento e o mal-estar provocado pela divisão fez com que o então presidente da CNBB, o arcebispo de Mariana dom Geraldo Lyrio, abrisse mão de um segundo mandato à frente da instituição.
Desta vez, a própria ala conservadora da Igreja demonstra cautela ao avaliar o cenário eleitoral. "Os compromissos que a presidente assumiu depois da polêmica de 2010 estão sendo cumpridos. O que ela não consegue é segurar a ansiedade dos grupos radicalizados que a cercam e tentam impor certas agendas. Mas ela está preservando os acordos", diz o bispo de Camaçari, dom João Carlos Petrini, responsável pela Comissão da Vida e da Família da CNBB. Italiano radicado no Brasil desde os anos 70, Petrini pertence ao movimento conservador "Comunhão e Libertação".
O rigor da CNBB em evitar dissidências deixou insatisfeita parte da ala conservadora, que resiste a aceitar a entidade como interlocutora do governo. "O ministro Gilberto Carvalho dialoga com a cúpula da CNBB e pensa que está tudo resolvido, mas os bispos são muito diferentes, não dá para colocar uma camisa-de-força. A gente aceita parâmetros para a discussão, mas não ordem unida. A CNBB não domina os bispos. A árvore tem muitos galhos", afirma o arcebispo da Paraíba, dom Aldo Pagotto.
Pagotto divulgou em João Pessoa uma cartilha em que recomenda o voto nos candidatos que façam a defesa da família e da vida e proponham mudanças na política econômica, como a redução de gastos públicos, a diminuição da carga tributária e o direcionamento de investimentos para a educação, onde propõe a volta do ensino de moral e cívica para doutrinar a juventude. "Vou continuar me manifestando, só não vou fazer recomendação expressa de voto", diz.
As manifestações católicas mais contundentes, por enquanto, ocorrem na base, reciclando a polêmica de 2010. Na página do "Grupo Pro Vida" de Anápolis (GO), dirigido pelo padre Luiz Carlos Lódi e famoso pelo lobby contra mudanças na lei de aborto, foi colocado este sábado um texto não assinado listando os "12 partidos perigosíssimos que constituem um verdadeiro exército organizado contra os valores cristãos". O primeiro da lista é o PT de Dilma Rousseff. O décimo é o PSB de Marina Silva.
A estridência destes grupos faz com que parta da própria hierarquia católica a iniciativa de tirar a agenda de valores morais de pauta. "O papa Francisco nos recomendou não ficarmos teimosamente a debater sobre aborto, casamento gay e drogas, como se fosse o único tema, sob pena de eliminar a possibilidade de falar de outros assuntos", diz Petrini.
Segundo o historiador e padre da ala esquerdista da Igreja, José Oscar Beozzo, interessa ao episcopado a defesa do estado laico como é aplicado no Brasil. "Aqui historicamente o Estado laico representou no Brasil garantia para a Igreja de que o Estado não irá intervir em suas atividades. Em outros países, como México e Bolívia, a separação entre Igreja e Estado envolveu até confisco de bens", comenta.
Em julho do ano passado, ao discursar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o papa Francisco explicitou o interesse da Igreja em manter o "status quo": "Favorável à pacífica convivência entre religiões diversas é a laicidade do Estado que, sem assumir como própria qualquer posição confessional, respeita e valoriza a presença do fator religioso na sociedade, favorecendo as suas expressões concretas", afirmou o pontífice.
A concordata entre o Brasil e a Santa Sé, ratificada em 2009, ilustra o caráter privilegiado da Igreja no estado laico brasileiro: a entidade goza de imunidades fiscais e trabalhistas, conta com a possibilidade de subsídios e o governo se comprometeu a implantar o ensino religioso multiconfessional em escolas públicas. Uma lei geral de religiões, estendendo estes benefícios a todas as demais confissões, está em discussão no Congresso.
"A defesa do Estado laico neste momento pode ser um freio em projetos que, no entender de alguns, levam o Estado a intervir na vida religiosa", comenta Beozzo.
Mais que a religião, importa o projeto de Marina, diz arcebispo
A possível eleição de Marina Silva (PSB) à Presidência da República divide a Igreja Católica, mas não pelo fato da candidata ser evangélica. Tanto a ala progressista quanto a conservadora do clero minimizam a questão religiosa. A candidata desperta desconfiança de um lado e do outro pela diversidade de sua base de apoio.
"Eu fico muito à vontade de ter Marina como presidente, sendo ela cristã praticante. É muito ruim particularizar esta questão religiosa. O que importa é o fato de ela representar um projeto de priorizar políticas econômicas para um país que parou de crescer", diz o arcebispo da Paraíba, Aldo Pagotto, conhecido pelas posições conservadoras.
A perda da posição central da Igreja Católica com uma presidente evangélica é vista com conformismo pelo pensamento católico conservador. Alinhado com esta corrente, o sociólogo e biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto vaticina: "O Brasil caminha para se tornar um país em que não haverá religião predominante. É melhor que o país tenha uma sociedade com o pluralismo religioso que caracteriza os Estados Unidos, do que o modelo europeu em que o sentimento religioso não tem relevância".
De acordo com Borba, Marina não quebra apenas uma polarização entre o PSDB e o PT, mas entre a esquerda e a direita de um modo amplo. "A Marina restaura a tradição de uma esquerda conservadora. Ela quebra a dicotomia de que a esquerda é sempre progressista e a direita é sempre tradicionalista. É uma candidata pós-moderna", afirma. As mudanças no discurso e no programa da candidata, entretanto, lançam dúvida dentro da ala mais conservadora.
"Ela é uma grande interrogação. Não me parece que seja uma pessoa com posições unívocas. Tudo vai depender das pressões que vão incidir sobre ela. Suas posições muitas vezes não coincidem com a de grandes grupos religiosos", diz o bispo de Camaçari, João Carlos Petrini.
A candidata do PSB tem passado católico, mas vinculado à ala progressista da Igreja. Esteve próxima de dom Moacyr Grecchi, então bispo de Rio Branco, hoje arcebispo emérito de Porto Velho. Partiu dessa ala o ataque mais virulento contra Marina, desferido em artigo publicado pelo ex-frei franciscano Leonardo Boff em seu blog.
O ex-frei a acusou de "mudar de lado", em uma referência às posições sobre política econômica da ex-ministra e sua própria fé pessoal. Afirmou que Marina sofre "de patologias de um tipo de compreensão fundamentalista da Bíblia que substitui a inteligência humana". Entre os integrantes da ala progressista que ainda mantêm responsabilidades dentro da Igreja, o tom é mais comedido.
"Marina não representa ameaça alguma ao Estado laico e é extremamente interessante para a democracia brasileira uma polarização entre uma ex-guerrilheira e uma evangélica. Elimina preconceitos", comenta o padre José Oscar Beozzo, historiador e coordenador de um centro de estudos voltado para movimentos sociais.
"O fundamental é saber se a agenda de debates brasileiros vai mudar. Nas últimas décadas, sempre que a Igreja Católica pôde influir neste debate, introduziu temas da agenda social, como a reforma agrária, por exemplo", diz Beozzo.
No documento político divulgado pela CNBB em maio, após sua assembleia geral, a entidade abraçou as mesmas prioridades que foram estabelecidas pelo PT em suas propostas. A CNBB pediu prioridade para a reforma política e copatrocinou uma proposta apresentada no ano passado, junto com outras instituições, como a OAB, em que se propunha mudanças no sistema de eleição proporcional e convocações de plebiscito.
Em outro ponto de confluência com o PT, a CNBB reivindicou "a democratização da mídia", sugerindo a revisão das regras de concessão de rádio e televisão. O documento de maio deverá ser o único oficial da entidade em relação às eleições deste ano.
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