quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os casais conviventes católicos e o Papa Francisco


"É uma reação compreensível à inegável tendência, corrente em muitas escolas americanas e na cultura da "mass media", ver no sexo uma atividade esportiva como as outras, se não pior. Deste ponto de vista, a América que chega às telas de TV na Itália é uma América superficial e pura: a violência na América é aquela das armas de fogo, mas também da violência sexual epidêmica", escreve Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo da University of St. Thomas.

Eis o artigo.
A notícia que o Papa Francisco iria abençoar matrimônios em São Pedro aos 14 de setembro próximo, entre os quais também casais conviventes com filhos, entra na agora longa lista de novidades do pontificado do Papa Bergoglio. Trata-se de uma novidade de tipo “pastoral” e não “doutrinal”, dado que nem a coabitação, nem o sexo pré-matrimonial são impedimentos canônicos (isto é, para a lei da Igreja católica) ao matrimônio. Mas, é uma novidade não de pouca monta, dado o papel que o matrimônio recobre na cultura católica e no debate público sobre as relações entre religião e política, e entre tradição da Igreja e modernidade moral.
Alguns católicos bem-pensantes já levantaram a sobrancelha, vendo nesta decisão do Papa de abençoar o casamento também destes casais de conviventes (isto é, na decisão do Papa de fazer aquilo que muitíssimos padres em todo o mundo já fazem) um sinal de debilidade da Igreja para a cultura do desempenho afetivo, da precariedade relacional e, em definitivo, do libertinismo sexual. Disto alguns chegam a tirar conclusões sobre a decadência do Ocidente, o avanço do Islã e o fim do mundo civil. O “catolicismo de ordem” “deste tipo na Itália é mais típico de certa geração, aquela dos ‘baby boomers” ou até antes, nascidos e crescidos num mundo no qual, entre o fim dos estudos e o início de um trabalho estável passam dias ou semanas, ou meses, e não anos ou décadas como agora. Era uma época na qual o desposar-se era uma escolha: se não imposta (como em certos filmes: baste pensar na época de Seduzida e abandonada), era uma escolha natural, e era uma escolha (especialmente a de casar na igreja) que nem sempre dizia algo sobre a escolha de fé cristã dos nubentes.
Num país como os Estados Unidos, ao invés, este tipo de cultura ainda é amplamente influente, especialmente na igreja americana. É muito forte o catolicismo bem pensante, para o qual certo tipo de cultura matrimonial constitui o elemento dirimente para a adesão à Igreja. O matrimônio destes jovens católicos militantes americanos ocorre frequentemente muito cedo (com frequência durante a universidade), não admite convivência e muito menos experiências de sexo pré-matrimonial.
É uma reação compreensível à inegável tendência, corrente em muitas escolas americanas e na cultura da mass media, ver no sexo uma atividade esportiva como as outras, se não pior. Deste ponto de vista, a América que chega às telas deTV na Itália é uma América superficial e pura: a violência na América é aquela das armas de fogo, mas também da violência sexual epidêmica. Mas, aquilo que os ideólogos do matrimonialismo católico americano ignoram (ou fingem ignorar) é que desposar-se aos vinte anos era natural há um século: hoje é muito diverso. Impelir hoje um jovem de vinte anos ao matrimônio significa obstinar-se a “naturalizar” (casar na idade da maturidade sexual para evitar o sexo pré-matrimonial) algo, o matrimônio, que é uma instituição tão “natural” quanto “social”. Não é mistério, de fato, que os matrimônios decididos em idade jovem, a fim de “não queimar” de castidade (para usar a linguagem de São Paulo), são os matrimônios mais de risco – num país como a América, onde se casa muito, mas também se divorcia muito mais do que no resto do mundo ocidental. As convivências pré-matrimoniais são (também) um dos modos de superar a crescente distância entre índole natural e natureza social da instituição matrimonial: e é uma coisa que muitos católicos do Ocidente entenderam muito bem. A questão é se se há de querer reconhecer a realidade, ou fingir que a realidade de muitos milhões de pessoas seja um acidente que nos diz nada sobre as dificuldades do ser humano.
Não admira que o Papa Francisco seja, para muitos americanos, um papa difícil de compreender: é um Papa que se dá conta das realidades sociais, que procura incidir sobre realidades existenciais concretas e não ideais, que sabe distinguir entre moralidade e moralismo, e que não tem paciência para as hipocrisias, menos ainda para aquelas revestidas de devoção. A partir destas diversas idéias sobre a pastoral do matrimônio, é evidente a importância crucial do Sínodo dos bispos sobre a família, de outubro próximo, e o papel de primeiro plano que aí desempenharão os americanos – como também os “americanistas” de nossa casa: toda referência ao Fólio de Giuliano Ferrara é puramente pretendido.

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