quarta-feira, 30 de maio de 2018

Corpus Christi: comunhão com o corpo, comunhão com o universo

Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a benção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: ‘Tomai, isto é o meu corpo” (Mc 14,22
(Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta), O evangelho é segundo Marcos 14,12-16.22-26. 
Na celebração da festa de Corpus Christi, corremos o risco de honrar o Corpo de Jesus, mas desprezar o corpo humano, “a carne de Cristo”. 
Participamos, com muita fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o encontro com os “corpos desfigurados”: explorados, manipulados, usados, escravizados, destruídos... Pode ser que tenhamos um profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na Eucaristia”, e não O vejamos nos “corpos” que estão aqui, ali, lá, por todos os lados. “Não nos devemos envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a carne de Cristo” (Papa Francisco)
É esse o sentido que a festa de “Corpus Christi” nos revela, ou seja, a festa do Corpo Histórico e Humano de Jesus, corpo prazeroso e sofredor, amado por muitos e muitas, rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado. Esta é também a festa do grande Corpo de Cristo que é a Humanidade inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e excluídos... Eles são a humanidade ferida no Corpo do Filho de Deus. 
Corpo de Cristo é também o universo inteiro, criado por Deus para que nele se encarnasse e habitasse seu Filho. Assim Jesus, na Ceia, ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, abraça os bilhões de anos de evolução e chama-os de seu Corpo e de seu Sangue. Cada cristão, ao fazer “memória” do Corpo de Jesus, entra em comunhão com todas as energias da Criação. 
Corpo de Cristo que continua sendo o Pão, fruto da terra e do trabalho dos homens e mulheres, todo pão que alimenta e é compartilhado, em fraternidade, a serviço dos que tem fome. 
“Corpus Christi” também nos motiva a perguntar: Como viveu Jesus, em sua corporalidade, a relação com o Pai, com os outros e com a natureza? E como nós somos convidados a viver nossa corporalidade? 
Jesus não compactuou com a visão dualista do ser humano (corpo e alma). Para Ele, tudo era sacramento, epifania de Deus, revelação do Reino, história de salvação... 
Jesus escandalizou a muitos proclamando que o “puro” ou “impuro”, não está fora, em ritos e prescrições. Não são impuros os enfermos, as mulheres menstruadas, os leprosos, as prostitutas...; a “pureza” está no coração que nos permite um olhar límpido, não possessivo, egoísta, invejoso ou violento... 
Jesus levou muito a sério a questão do corpo, o seu e o das pessoas que encontrou ao longo de sua vida. Cuidou do seu descanso e o daqueles que com Ele compartilhavam o mesmo caminho; deixou-se acariciar e ungir sua cabeça e seus pés com perfumes valiosíssimos por algumas mulheres, algumas delas mal-vistas pelos rótulos preconceituosos que os varões lhe impunham, agradecendo esse gesto fruto de um amor sem cálculos; curou corpos atrofiados pela doença e fragilizados pela exploração... Os Evangelhos nos situam Jesus no nível da corporalidade próxima: é Ele que sabe olhar, tocar, sustentar, acariciar... 
Se fixarmos nossa atenção em Jesus na última Ceia, descobriremos que suas palavras (“isto é o meu corpo”) e seus gestos (partir e repartir o pão) constituem a essência afetiva e social (de amor e justiça) do cristianismo, a verdade central do Evangelho. 
Eucaristia é “Corpo” e é corpo doado e partilhado, não pura intimidade de pensamento, nem desejo separado da vida. A Eucaristia é Corpo feito de amor expansivo e oblativo, que se expressa no trabalho da terra, na comunhão do pão e do vinho, no respeito mútuo frente o valor sagrado da vida, no meio do mundo, nas casas de todos... Não são necessários grandes templos e nem suntuosas procissões para celebrar a festo do Corpo de Deus; basta a vida que se faz doação e partilha, no amor, como Jesus fez. 
Diante do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com outros corpos, com Deus e com o corpo da natureza. Nosso humilde corpo é parte da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a natureza. 
Aqui precisamos encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de nos relacionar estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há experiência de Deus e dos outros, que não ocorra em nosso corpo. 
O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção, alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e contemplação... O corpo não é só a unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos. 
O corpo é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso senti-lo, percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que o corpo se transforma em caixa de ressonância da “voz de Deus” que nos previne contra caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena. 
O corpo é “lugar” teológico, lugar da manifestação de Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito, enquanto participa, pensa, sente, deseja, decide... 
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego. 
Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo, olhar para dentro do próprio corpo, com atitude reverente. 
Minha própria casa é meu corpo; o templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus, com seu Espírito, anima meu corpo; mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de meu corpo. 
Nosso corpo constitui nossa presença no mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo do outro; é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se “territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos quais Deus revela seu rosto compassivo. 
O corpo é um documento histórico: há corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos” gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver. 
O corpo desrespeitado, expropriado e dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida. 
O corpo é lugar de êxtase e de opressão, de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição. 
O corpo é espaço de salvação, de justiça, de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração, da festa, da entrega... Celebrar “Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos. 
Corpo de Cristo 
Olhos inquietos por verem tudo. Ouvidos atentos aos lamentos, aos gritos, aos chamados. 
Língua disposta a falar verdade, paixão, justiça… 
Cabeça que pensa, para encontrar respostas e adivinhar caminhos, para romper noites com brilhos novos. 
Mãos gastas de tanto servir, de tanto abraçar, de tanto acolher, de tanto repartir pão, promessa e lar. 
Entranhas de misericordiosas para chorar as vidas golpeadas e celebrar as alegrias. 
Os pés em marcha em direção a terras abertas e a lugares de encontro. 
Cicatrizes que falam de lutas, de feridas, de entregas, de amor, de ressurreição. 
Corpo de Cristo… Corpo nosso. (José María Olaizola, SJ) 
“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja invadido por Ti”. 

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