Bolsonaro tem direito a sua opinião sobre a ditadura, não a
reescrever a história
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Tropa do Exército em frente ao Congresso Nacional em 31 de março de 1964 — Foto: Arquivo / Agência O Globo |
Reescrever a história é um item previsível no manual dos
candidatos a autocratas. O exemplo canônico é Stálin, que mandava apagar os
adversários que matava das fotografias. Stálin foi a inspiração do escritor
britânico George Orwell em 1984 e na sátira A revolução dos bichos. Está nele a
origem do termo “orwelliano” para qualificar as tentativas de disseminar a
mentira oficial como verdade.
Bolsonaro pode ter dezenas de qualidades, outros tantos
defeitos, mas não é historiador. Se tem razão ao apontar erros na leitura
padrão na esquerda sobre os eventos daquela época, é um erro maior minimizar o
arbítrio. Não há dúvida alguma sobre os fatos: foi golpe, houve censura,
tortura, pelo menos 434 mortos e desaparecidos arbitrariamente, fechamento do
Congresso, cassação de direitos políticos.
Houve uma ditadura.
Pode-se até debater se tudo isso se justificava diante do
terrorismo, da guerrilha e do risco de um golpe de esquerda no Brasil. Nenhum
democrata dirá que sim, mas todo democrata genuíno terá de admitir a
divergência. O inadmissível é tentar mudar os fatos por meio de palavras e
expressões que tentem atenuar o arbítrio. É chamar uma ditadura de qualquer
outra coisa que não seja ditadura.
Depois da redemocratização, as Forças Armadas passaram por
uma depuração ao lidar com os erros do passado. Vem daí a postura mais profissional
e menos política da nova geração de militares. Não houve, contudo, um acerto de
contas com a punição dos responsáveis por violações de direitos humanos, como
na Argentina ou no Chile.
A Comissão da Verdade, estabelecida no governo Dilma
Rousseff, cometeu outro equívoco de enormes proporções ao excluir os militares
e ao se omitir sobre os crimes da guerrilha. Se o objetivo era a reconciliação
nacional, ignorar um dos lados era o pior caminho.
A reação era previsível. Tornaram-se comuns provocações ou
elogios a tiranos sanguinários da América Latina, como Stroessner ou Pinochet.
A cúpula militar, é verdade, jamais mordeu essa isca. Bolsonaro e seus
partidários sim. Nisso, em nada diferem dos comunistas que vangloriam Stálin,
Mao ou, mais recentemente, dos petistas que defendem Maduro.
Tiranos são condenáveis independentemente de coloração
ideológica. São condenáveis tão-somente por ser tiranos. Por censurar,
torturar, matar adversários arbitrariamente e por tentar impôr uma visão
mentirosa e distorcida da história.
As “comemorações devidas” do Golpe de 1964, autorizadas por
Bolsonaro, não devem em nenhum momento perder de mente o caráter nefasto da
ditadura que assombrou o Brasil por quase 20 anos. Reconhecer a desgraça dos
Anos de Chumbo, tanto na política quanto na economia, não significa endossar o
terrorismo ou o autoritarismo de esquerda. Significa valorizar a democracia.
Ela foi uma das mais difíceis e custosas conquistas
brasileiras. Mas o Brasil aprendeu. Aprendeu que democracia é melhor que
ditadura, que liberdade é melhor que tirania, que nenhum inimigo, real ou
imaginário, justifica a violação sistemática e arbitrária de direitos humanos,
a tortura, a censura e os assassinatos nos porões.
Não fosse a democracia, Bolsonaro não estaria onde está.
Seria importante que ele reconhecesse o valor de todos aqueles que lutaram
dentro da lei (a gigantesca maioria) para acabar com a ditadura imposta depois
do golpe. São eles que lhe garantem o direito a ter sua própria opinião sobre o
assunto e a expressá-la livremente. Mas, jamais, o de negar os fatos ou de
tentar reescrever a história.
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