segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Evangélicos, com apoio de Bolsonaro, fazem ofensiva para dominar política externa do Brasil para África

Os deputados federais e pastores evangélicos Marco Feliciano
(3º da esq. à dir.) e Márcio Marinho (6º) acompanham
o chanceler Ernesto Araújo em giro recente
 pela África.Foto: MRE / BBC News Brasil
João Fellet - @joaofellet - BBC News Brasil -  O esvaziamento da política externa brasileira para a África, relegada ao segundo plano após ser tratada como prioridade nos anos Lula (2003-2010), abriu caminho para o avanço de igrejas evangélicas no continente.
Com o apoio do governo Jair Bolsonaro, congressistas ligados a grupos neopentecostais vêm ocupando espaços para liderar a agenda do Brasil com países africanos, antes influenciada fortemente por empreiteiras golpeadas pela Lava Jato.
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A investida busca facilitar a penetração de igrejas e missionários brasileiros nessas nações e se alinha com a nova postura do Ministério das Relações Exteriores, que em fóruns internacionais passou a defender bandeiras como a oposição ao aborto e o combate à perseguição de cristãos.
O movimento, porém, enfrenta resistências em alguns países africanos, onde missionários brasileiros — particularmente os ligados à Igreja Universal do Reino de Deus — têm enfrentado escândalos e problemas na Justiça.

Grupos Parlamentares de Amizade

A ofensiva evangélica na África é capitaneada pela bancada religiosa no Congresso. Em uma de suas frentes de atuação, deputados federais evangélicos passaram a presidir sete dos oito grupos parlamentares de amizade entre o Brasil e nações africanas.
Esses grupos têm o objetivo de aproximar o Brasil de nações estrangeiras e influenciar a agenda bilateral. É comum que o Executivo recorra aos grupos para tirar do papel acordos assinados com os países.
Deputados ligados à Universal lideram os grupos responsáveis por Angola, Cabo Verde, Moçambique, Camarões e Namíbia, e propuseram a criação de um grupo para o Malauí.
Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus,
prega em templo em Soweto, na África do Sul, em 2009;
 organização está presente em 23 dos 55
 países africanosFoto: IURD-Divulgação / BBC News Brasil

Um deputado da Assembleia de Deus preside o grupo que trata do Marrocos, e um congressista da Igreja Internacional da Graça de Deus está encarregado pelo Quênia. A exceção é a África do Sul, cujo grupo é presidido pelo deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), sem laços com igrejas.

Defesa, cooperação técnica e ajuda humanitária

Nos últimos anos, a atuação da bancada evangélica em relação a nações africanas vem extrapolando assuntos religiosos, expondo um papel cada vez mais diversificado nas relações com o continente.
Deputados do grupo trabalharam pela aprovação de acordos entre o Brasil e países africanos nas áreas de defesa, educação, cooperação técnica e serviços aéreos, e cobraram o governo a ampliar a ajuda humanitária ao continente.
Um dos congressistas engajados na ofensiva é o deputado federal Marco Feliciano (sem partido-SP). Fundador da Catedral do Avivamento, filiada à Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil, Feliciano teve o primeiro contato com a África nos anos 1990, quando atuou como missionário em Angola.
Ele diz à BBC News Brasil que a relação dos governos anteriores com líderes religiosos era de "mera tolerância", ao passo que hoje há total sintonia.
"O governo Bolsonaro é um governo que se declara temente a Deus, em conformidade com o mais profundo sentimento da nacionalidade brasileira", afirma Feliciano.
Num sinal de alinhamento com os evangélicos quanto à política para a África, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, viajou no início deste mês a cinco países africanos acompanhado de três congressistas, dois deles pastores e membros da bancada: o próprio Feliciano e o deputado federal Márcio Marinho (Republicanos-BA). Completava a comitiva o deputado federal Hélio Lopes (PSL-RJ).
Feliciano diz que a viagem — na qual o grupo passou por Angola, Costa do Marfim, Nigéria, Cabo Verde e Senegal — foi "muito produtiva" e envolveu debates sobre economia, defesa, segurança e valores morais.
Ele diz que seu maior interesse em relação ao continente diz respeito à religião. "Hoje a África é o local de maior expansão do cristianismo no mundo, isso merece minha especial atenção", afirma.
Na passagem pela capital angolana, Luanda, Feliciano foi tratado como celebridade na Igreja Catedral de Adoração e Promessa, ligada à Assembleia de Deus, onde pregou por mais de uma hora. Em um templo com capacidade para 5 mil pessoas, Feliciano chorou ao ser apresentado pelo pastor angolano Esmael Sebastião como "uma das pessoas mais influentes da nossa geração".
Ovacionado pelos fiéis, o deputado disse que a igreja havia mudado muito desde sua visita anterior. "Vinte anos atrás, eu tinha que jogar fogo no povo, e agora é o povo que joga fogo em mim aqui", afirmou, inflamando ainda mais a multidão.
A Assembleia de Deus é uma das várias igrejas brasileiras operantes na África, onde a adesão a correntes neopentecostais têm crescido intensamente últimas décadas. A maior igreja brasileira no continente é a Universal, presente em 23 dos 55 países africanos.
O continente também é cobiçado por várias organizações missionárias brasileiras, entre as quais a Gideões Missionários da Última Hora, que tem operações em 11 países africanos e recebeu Bolsonaro em seu último congresso, em maio. Em seu site, o grupo descreve a África como o "continente mais perigoso do mundo", onde busca "levar a mensagem de salvação a um povo perdido, sem esperança e que não conhece a Jesus Cristo".

Caminho desimpedido

Observado pelo chanceler Ernesto Araújo, o deputado federal
 Marco Feliciano cumprimenta o presidente de Angola,
João Lourenço, durante visita recente ao país.
Foto: Marco Feliciano-Divulgação / BBC News

A viagem à África na companhia de congressistas evangélicos foi o último de uma série de acenos de Ernesto Araújo à bancada religiosa. Em junho, ele recebeu o grupo no Itamaraty para um "Diálogo sobre Política Externa com Parlamentares Evangélicos" e, em dezembro, participou da Conferência Nacional da Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional.
Diplomatas que não quiseram ser identificados disseram à BBC News Brasil que a África é a região do globo onde os evangélicos exercem mais influência na política externa brasileira hoje, pois a agenda do grupo no continente não se choca com a de outras alas relevantes do governo.
Os evangélicos também têm grande interesse em relação a Israel e vêm pressionando o governo a transferir a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém. Mas a medida é rejeitada por outro setor influente no governo, o agronegócio, que até agora conseguiu barrar a iniciativa.
A influência religiosa na política externa também se nota na nova postura do Brasil em órgãos internacionais. Em uma conferência da ONU em março, o governo brasileiro se posicionou contra a citação ao direito ao acesso universal a serviços de saúde reprodutiva e sexual em um documento por entender que as expressões poderiam dar margem à "promoção do aborto".
Em outra conferência, na Hungria, em novembro, o secretário de Assuntos de Soberania Nacional e Cidadania do Itamaraty, Fabio Mendes Marzano, defendeu que "liberdade religiosa não é somente o direito de praticar uma religião, mas o direito de se manifestar, debater e defender a fé, e mesmo de tentar converter aqueles que não têm uma religião".
Marzano discursou em um evento contra a perseguição de cristãos, bandeira promovida pelo presidente americano, Donald Trump, e abraçada pela atual gestão do Itamaraty.
Segundo o secretário, a conversão de não crentes não pode ser feita "pela força, mas lhes mostrando a verdade, a verdade real".
Questionado pela BBC News Brasil sobre o que seria essa "verdade real", o Itamaraty não respondeu. Em nota, o órgão disse apenas que o "Estado é laico, mas não é ateu". "O Brasil é país majoritariamente cristão e a defesa das minorias cristãs no mundo é parte essencial do interesse nacional", afirmou o ministério.

Aliança Itamaraty - Igreja Universal

Outros sinais de convergência entre a agenda evangélica e o Itamaraty foram emitidos nos últimos meses, quando a Igreja Universal se envolveu em conflitos em Angola e São Tomé e Príncipe, duas ex-colônias portuguesas no oeste africano onde a denominação tem presença relevante.
Em São Tomé e Príncipe, um levante popular no início de novembro provocou a depredação de vários templos da Universal e a morte de um adolescente. A crise foi desencadeada pela prisão de um pastor são-tomense a quem foram atribuídas denúncias de abusos da Universal contra funcionários africanos.

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