segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

O bicho de pé de Ilhéus

Tatiani V.Harvey 
Médica Veterinária 
Doutora em Parasitologia/UESC
CRMV/BA 04034
Entre as zoonoses endêmicas no nosso município, a exemplo da Larva migrans cutânea e a giardíase, destaco a tungíase, popularmente conhecida como bicho de pé. Esta zoonose é causada pela penetração da pulga de areia do gênero Tunga na pele de homens e animais. Após a penetração, o abdômem da pulga desenvolve-se, desencadeando uma reação inflamatória e provocando coceira, dor e alteração do andar. Além disso, pode resultar em infecções bacterianas graves, deformidade de dígitos e unhas e perda de dígitos. 
A infestação por este parasita é frequente em comunidades carentes, fato comprovado pelos trabalhos que realizei em várias comunidades de Ilhéus, como, por exemplo, no povoado turístico da Juerana, Distrito de Aritaguá. Neste local, atualmente, a infestação continua a ser estudada, agora na área de tratamento da doença. Trabalho importantíssimo desenvolvido em parceria entre UFMS, UESC e uma empresa estrangeira de produtos veterinários, e com o qual colaboro, com muita satisfação. 
Apesar das consequências desta parasitose serem clinicamente importantes para homens e animais, eu gostaria de chamar a atenção ao processo da doença nos cães, pois eles são um dos principais disseminadores da Tunga no ambiente. E, também, os que mais sofrem com a infestação. Para isto usarei o exemplo de uma comunidade ilheense onde a infestação é frequente ao longo do ano. Neste local, como a maioria dos cães são semidomiciliados, ou seja, têm tutor, mas vivem soltos nas ruas, os animais infestados disseminam, permanentemente, o parasita por toda a comunidade. E cada pulga gera, aproximadamente, 200 ovos! Assim, os locais mais frequentados por estes cães tornam-se focos de infestação. 
Observei, ao longo de alguns estudos, que a expectativa de vida dos cães em comunidades carentes é, em média, de 4 a 5 anos, e a tungíase contribui consideravelmente com esta condição. Cães, especialmente aqueles com um alto grau de infestação, em função da dor e desconforto ao caminhar, reduzem a frequência de alimentação e consumo de água. Lembre-se que é comum, em locais como este, que parte ou toda a alimentação dos cães seja oriunda dos pontos de coleta de lixo. Assim, animal que não vaga, não come bem. Diversos tutores relataram não ter condição de alimentar seus animais e, por isso, os criam soltos a fim de que eles possam conseguir alimento em outros lugares. Desta forma, o quadro de desnutrição e desidratação agrava outras doenças concomitantes, como as verminoses, culminando em óbito. Dá para entender, então, que a tungíase merece atenção? Na verdade, esta doença é uma entre as muitas doenças negligenciadas no nosso país. E como muitas delas, negligenciada, também, por pesquisadores. 
Outro dia, presenciei uma moradora retirando as bolsas da Tunga, com agulha e pinça, dos pés de um familiar que tinha infestação maciça. O detalhe: na frente de casa, recebendo toda a poeira da rua de terra. Naquela comunidade, muita gente não foi vacinada contra o tétano! E as bolsas cheias de ovos eram jogadas no chão. Ainda, segundo o acometido, normalmente, antes e depois de tirar as bolsas não se faz desinfecção ou tratamento algum dos ferimentos. E para os que têm coragem de mexer com as patas dos cães acontece o mesmo. 
Agora, além da importância do desenvolvimento de ações preventivas em saúde para o controle da doença, você consegue enxergar a importância da integração de veterinários às equipes dos núcleos de saúde da família, neste caso, no combate à Tunga? Sim? Bem, o governo não.

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