quinta-feira, 7 de maio de 2020

Dê uma olhada no verbete esperança.



"Quem acredita em Deus tem a tarefa urgente de tornar sua imagem atual. Um Deus que cria por amor e vive consignado à sua criação, mas com uma presença que não pode ser evidente, porque funda e promove sem interferir respeitando a autonomia das criaturas: tanto a das leis físicas (Whitehead fala felizmente de Deus como "poeta do mundo"), especialmente aquelas da liberdade", escreve o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, em artigo publicado por Settimana News, 05-05-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
De repente, um "pequeno" vírus transtorna o mundo, fazendo de todos (pan) um único povo (demos): pela primeira vez uma "aldeia global". Transtorna até as fundações, fazendo cair, uma a uma, casas de papel, seguranças vazias, preocupações superficiais.
Apresenta o cenário mais verdadeiramente humano na inesperada explosão de generosidade fraterna que nos une diante do sofrimento e da morte. Impondo o domínio do que a psicologia chama de "princípio da realidade" e do que a Bíblia descreve há milhares de anos como a tentação de querer ser como Deus. Com uma diferença: a psicologia, pelo menos um tipo de psicologia, nos deixa indefesos diante do instinto de morte: o livro de Gênesis acende uma esperança de salvação para o futuro.
Mas a esperança – já o sabia Péguy - é uma criança pequena e frágil. Precisa de atenção. A humanidade está em uma encruzilhada onde tem uma nova oportunidade para aprender. A modernidade, em seu entusiasmo pela emancipação, criou maus hábitos, típicos de toda adolescência: os jovens, cheios de razões para protestar, exageram no que propõem; os idosos defendem o passado já acabado, mas conservam valores que não devem ser abandonados (o último livro de Habermas, Auch eine Geschichte der Philosophie, de mais de 1.700 páginas, insiste na sabedoria dos noventa anos). Falando a partir da teologia, isso implica que, diante do desafio do mal, todos, tanto a tradição religiosa quanto o protesto ateu, precisam aprender.
É urgente unir-se na luta: através do diálogo crítico nas interpretações, aproveitando o que nos une na prática, antes de chegar às diferenças na teoria. Felizmente, nós seres humanos somos complexos, e muitas vezes colocamos em prática também o que não sabemos. Algo novo está acontecendo. Na saúde, nos serviços, na vizinhança, assistimos a um trabalho unido e conjunto, sem carteirinha de partido ou certificado de batismo, sem distinção de sexo e também sem fronteiras na investigação. Perder-se em ataques ou acusações, convertendo o mal em apologética defensiva ou na acusação de ser a "rocha do ateísmo", representa uma reação estéril.
Além disso, é uma reação culturalmente anacrônica. Porque as posições atuais participam ambas, conservadoras e progressistas, no mesmo preconceito acrítico: acreditar na possibilidade de um mundo-sem-mal. Hoje sabemos que esse é apenas um mito obsoleto, que sonha religiosamente com paraísos primitivos e freudianas fantasias infantis de onipotência. Fora das discussões a favor ou contra a teodiceia, todos sabemos hoje que o mal é o produto inevitável de um mundo necessariamente finito. Sabem isso os filósofos que, com Spinoza, ensinam que "toda determinação é uma negação" e, com Hegel, que a contradição é a lei de toda realização finita. O senso comum também sabe disso, ensinando que não se pode beber e soprar ao mesmo tempo e que não é possível fazer omelete sem quebrar os ovos.
Em não perceber isso aí está a armadilha, invisível por ser pré-moderna, do famoso dilema de Epicuro: ou Deus pode e não quer, e então ele não é bom; ou quer e não pode, e então não é onipotente ... Portanto, se o mundo-sem-mal é um conceito impossível e contraditório, tirar conclusões dele seria equivalente a dizer que Deus não é bom porque não quer fazer a quadratura de círculo ou não é todo-poderoso porque não faz ferros de madeira.
Quando essa evidência se torna explícita, é igualmente anacrônico continuar acreditando em um Deus admitindo que, se quisesse, poderia não apenas acabar com o coronavírus, mas com todo o sofrimento do planeta, bem como negar sua existência, reconhecendo a autonomia do mundo e sabendo que o que nele acontece sempre tem uma causa intramundana.
A religião precisa atualizar sua imagem de Deus e responder a ela com procissões ou súplicas que tenham sentido apenas assumindo que um mundo-sem-mal é possível. Pela mesma razão, o ateísmo precisa ser consequente e não negar a Deus porque não interfere nas leis físicas ou não controla a liberdade humana.
Dar esse passo tem consequências importantes, claras em um nível prático, mas mais obscuras para o significado da vida e da história. Primeiro de tudo: estamos progredindo. O mundo é hoje iluminado por uma onda quase gravitacional de solidariedade fraterna que nos une a todos contra o mal, o inimigo comum. Dura lição, mas ainda assim, lição.
As diferenças aparecem em outro nível. Quem não acredita em Deus tem diante de si a tarefa de configurar sua vida e dar-lhe sentido dentro da simples imanência. Nela poderemos vencer o coronavírus: no entanto, devemos levar em conta o fato de que o mal continuará presente com outras faces, incluindo a última: a morte, esse "senhor absoluto" de que Hegel falava.
Quem acredita em Deus tem a tarefa urgente de tornar sua imagem atual.
Um Deus que cria por amor e vive consignado à sua criação, mas com uma presença que não pode ser evidente, porque funda e promove sem interferir respeitando a autonomia das criaturas: tanto a das leis físicas (Whitehead fala felizmente de Deus como "poeta do mundo"), especialmente aquelas da liberdade.
O Evangelho, dando forma a mais profunda nostalgia do coração humano, consiste em propor a descoberta que Deus, porque ele é capaz de nos criar do nada e tem o poder de não nos deixar voltar ao nada, redimindo-nos da morte, tornada assim o "último inimigo” a ser derrotado. Enquanto isso, há um companheiro no caminho: a história não é prova, mas uma condição de possibilidade de existência; e o mal não é castigo, mas o inevitável pedágio de crescimento em toda existência finita.
A esperança é possível, apesar do mal. E a humanidade tem o direito de se sentir acompanhada. Mesmo nisso Whitehead teve palavras que eu admiro e que vale a pena mencionar neste momento especialmente necessitado: "Deus é o grande companheiro, o amigo do sofrimento, aquele que entende".

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