segunda-feira, 18 de maio de 2020

O risco da falsa segurança. Por que é uma ilusão acreditar que retomar as atividades fará a vida voltar ao normal

Hong Kong relaxou a quarentena, depois teve de voltar atrás
— Foto: Isaac Lawrence / AFP

(Helio Gurovitz) - A eficácia do distanciamento social para deter a Covid-19 vem sendo confirmada por estudo após estudo. A comparação entre a evolução da epidemia nos condados vizinhos de estados americanos que adotaram políticas distintas, Iowa e Illinois, publicada na última sexta-feira pela revista da Associação Médica Americana (Jama), não deixa dúvida de que, não fosse a determinação do governo de Illinois para a população ficar em casa, teria havido bem mais mortes pela doença.
Numa análise publicada na Health Affairs, cientistas estimam que, sem nenhuma medida de isolamento, o novo coronavírus Sars-CoV2 teria infectado 35 vezes o número de pessoas que o pegaram no Estados Unidos (estes e outros estudos comprovando a eficácia do distanciamento social estão no item 2 dos links publicados aqui na manhã de sábado).
Ao mesmo tempo, o custo econômico e psíquico das medidas de distanciamento social tem ampliado a pressão pelo relaxamento das quarentenas. O maior receio que cerca o alívio ao isolamento é o conhecimento ainda incipiente sobre as características de transmissão do Sars-CoV2. Países que acreditaram ter vencido a batalha se viram obrigados a recuar e a estabelecer novas quarentenas.
O caso mais eloquente é Hong Kong, tido como exemplo de sucesso na contenção da Covid-19. Não foi um êxito sem tropeços, como revela o depoimento em vídeo do epidemiologista Ben Cowling, da Universidade de Hong Kong, ao Instituto Isaac Newton de Ciências Matemáticas, da Universidade de Cambridge, no Reino Unido.
Cowling conta que as medidas decretadas no início de janeiro foram eficazes para reduzir o principal indicador usado pelos epidemiologistas para acompanhar a evolução das epidemias, conhecido como “número de reprodução”, ou pela letra R. Em termos simples, R equivale ao número médio de pessoas a quem um infectado transmite o vírus.
Quando R está acima de 1, quem pegou a doença a transmite a mais de um outro – e a epidemia continua a crescer. Quando R cai abaixo de 1, ela some naturalmente com o tempo, pois passa a haver menos doentes amanhã do que há hoje. Em Hong Kong, R caíra abaido de 0,5 em fevereiro. No início de março, o governo decidiu reabrir as atividades. Resultado: em 15 de março, a epidemia voltara a sair do controle (R subira até 2) – e as medidas de isolamento tiveram de ser retomadas.
Mais recentemente, o temor é que a mesma complacência leve a uma nova escalada do contágio na Itália, sobretudo nas regiões que foram menos atingidas pelo vírus na primeira onda, uma das mais devastadoras do planeta. “Mesmo um retorno a 20% da mobilidade anterior ao ‘lockdown’ poderia levar a uma escalada no número de mortes bem maior que a experimentada na primeira onda em várias regiões”, afirma o relatório do Imperial College que simulou vários cenários para a reabertura italiana.
O relatório alerta para a sensação de falsa segurança que a retomada das atividades pode provocar. “Altas futuras no número de mortes estarão defasadas em relação à intensidade da transmissão, então a segunda onda não ficará imediatamente aparente apenas pelo monitoramento do número diário de mortes”, afirma o documento.
Não quer dizer que não seja possível reabrir. Mas que nenhuma reabertura deve prescindir de um acompanhamento atento do principal indicador que pode revelar uma nova escalada nas infecções – o valor de R –, de preferência com a maior precisão local possível.
“O Brasil corre o mesmo risco da Itália de recair nessa sensação de falsa segurança”, afirma o brasileiro Ricardo Parolin Schnekenberg, da equipe do Imperial College que produziu o relatório sobre o Brasil (revelado aqui em primeira mão dez dias atrás). “Refizemos as contas para o Brasil nesta semana e, infelizmente, não houve uma queda significativa no R a ponto de nos dar tranquilidade.”
O momento da reabertura também deve ser cercado de medidas especialmente dedicadas a reduzir o contágio nos ambientes onde o risco é maior: recintos fechados, domicílios, transporte público, asilos e hospitais. Reuniões familiares, festas e eventos com mais de dez pessoas deverão estar descartados por um bom tempo.
O uso de máscaras deveria ser obrigatório em locais públicos, assim como a higiene das mãos. Em tudo isso, o governo deveria ter um papel. Com todos os cuidados, é até possível vislumbrar um momento em que recuperaremos um pouco da nossa liberdade. Mas não dá para ter ilusões. Enquanto o vírus estiver à solta e R puder voltar a crescer, a vida não voltará ao normal.

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