sábado, 3 de abril de 2021

Bicho-de-pé: “coceirinha boa”?!

Dias atrás, durante uma pesquisa para um novo projeto, deparei-me com as palavras e reflexões “desinformativas” de uma jornalista sobre uma das doenças negligenciadas no Brasil, a Tungíase, causada pelo popular bicho-de-pé, ou bicho-de-porco. Assim, para quem pensa que a infestação com a pulga é apenas uma “coceirinha boa”, esclareçamos alguns fatos.
Tatiani V. Harvey
Médica Veterinária
Doutora em Ciência Animal com ênfase em Doenças Parasitárias
Especialista em Clínica de Pequenos Animais
Colaboradora do One Health Institute Heukelbacha
A pulga penetra na pele de homens e animais causando um processo inflamatório agudo durante a dilatação de seu abdômen, que é reflexo da produção de, aproximadamente, 200 ovos, os quais são, pouco a pouco, liberados no ambiente. O processo de hipertrofia abdominal do parasito resulta, a olho nu, num halo branco com um ponto preto central, na pele; e a inflamação, então, é a responsável pela famosa coceirinha do bicho-de-pé. Parece algo simples, não é? Mas esta infestação pode resultar em infecções bacterianas secundárias, incluindo o tétano. A cronicidade da doença pode resultar em deformidades, necroses teciduais, tumores, perda de dígitos e, também, em óbito, tanto em homens quanto em animais. Especialmente, na presença de infestações com um alto número de parasitos, que ocorrem, comumente, em comunidades carentes e áreas rurais de países latino-americanos, africanos e caribenhos. A pulga infesta, preferencialmente, pés e patas, podendo infestar, ainda, outras regiões do corpo. Perdas econômicas no processo produtivo da carne ou leite em bovinos, suínos, ovinos e caprinos são apontadas em alguns estudos, por consequência das altas infestações nas patas, que podem dificultar a monta e a marcha; esta última pode dificultar o acesso ao alimento. Além disso, infestações nas tetas de vacas e porcas podem resultar em mastite, agalactia e, consequentemente, no déficit do desenvolvimento ou óbito de crias. Como você pode observar até aqui, nada melhor que uma boa pesquisa antes de tecer comentários sobre qualquer doença.
A doença passou a fazer parte do grupo de doenças negligenciadas, recentemente, pela OMS. Negligenciada tanto pelas populações afetadas, quanto por autoridades de saúde e científicas. Conforme um levantamento de óbitos por Tungíase no Brasil, realizado por uma acadêmica da UFPI, através do Painel de Monitoramento de Mortalidade CID-10, foram registradas 11 mortes, no período de 2008 a 2017, sendo 54,5% no Nordeste. Quatro óbitos ocorreram na Bahia, dois no Paraná e um óbito no Rio Grande do Norte, Ceará, Minas Gerais, Goiás e Roraima. Mais uma justificativa pela minha frustração com os comentários da profissional, entre os quais segue um exemplo: “O jeito é me morder de inveja quando alguém contar sobre aquela coceirinha boa e aquele bicho-de-pé gigante que foi tirado de uma tacada só. Definitivamente, a gente não pode ter tudo na vida”.
Muitas pessoas associam o bicho-de-pé apenas à presença de porcos, que são os principais reservatórios da pulga em países africanos. No entanto, no Brasil, o contexto da doença é um tanto diferente. A literatura científica brasileira aponta os cães e gatos como os principais dispersores e transmissores do parasito. E da mesma forma que os indivíduos infestados sofrem com as infestações, sofrem os animais que habitam os ambientes vulneráveis das comunidades que mencionei acima. Veja, então, a importância de evitar que os animais circulem livremente nas ruas, a importância do controle populacional de cães e gatos, e de prover o cuidado adequado a esses animais.
Contrariamente ao que muitos pensam, não existe apenas uma espécie de Tunga, nome científico da pulga. Existem 14 espécies, dentre as quais oito circulam pelo Brasil, sendo duas delas zoonóticas, ou seja, que podem ser transmitidas ao homem. No Brasil, a espécie mais frequente é a T. penetrans. Entre os hospedeiros brasileiros incluem-se o homem, cães, gatos, suínos, bovinos, ratos, camundongos, tatus, tamanduás, macacos e roedores silvestres.
Conforme a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), há 20 milhões de pessoas expostas à infestação, nas Américas. Neste contexto, a OPAS, desde 2018, têm realizado ações de combate às infestações em comunidades indígenas da América Latina, incluindo as brasileiras, as quais concentram casos de hiperinfestações em pessoas e animais.
Ainda não há, no mercado, tratamento específico para a doença em humanos e animais. A OPAS tem um usado um medicamento à base de dimeticona, registrado recentemente, no tratamento das populações indígenas. No entanto, algumas alternativas têm se mostrado eficazes nas terapêuticas humana e animal. Por isso, ao ser infestado, busque um profissional de saúde ou, em caso de infestações em animais, um médico veterinário. Nada de remover o parasito com objetos ou soluções que possam resultar no agravamento do processo inflamatório! Um outro detalhe importante e que colabora com a manutenção do parasito no ambiente é retirar a pulga da pele e jogá-la no chão. Lembre que ela está cheia de ovos, os quais irão seguir o ciclo normal no ambiente, especialmente em solos arenosos.
Enfim, quando se fala em parasitos, nem sempre o senso de humor cai bem.

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