quinta-feira, 28 de maio de 2020

Sobre a Pandemia: o que nos ensina o olhar do professor Milton Santos



(REVISTA IHU ON-LINE) "Na trilha do capitalismo, vírus primeiro afetou os centros econômicos; depois, proliferou pelas periferias — um homogeneização pela doença, nunca pela cura. Seria o desacelerar o princípio de outra globalização, como propunha o geógrafo?", questiona Paul Clívilan Santos Firmino, doutorando em Geografia Humana na Universidade de São Paulo – USP e Bolsista FAPESP.
Eis o artigo.
Os investimentos em ciência e técnica, no pós-Segunda Guerra Mundial, contribuíram para a consolidação dos Estados Unidos da América como principal potência mundial. Constituía-se naquele momento novo período na história, sustentado por uma ideologia internacional dominante, valorização de suas novíssimas técnicas que impuseram objetos criados com alto grau de intencionalidade e direcionados a fins preestabelecidos.
Segundo o geógrafo Milton Santos, tratava-se da chegada do meio técnico-científico-informacional, com ele a criação e legitimação do processo de globalização, direcionado à satisfação das necessidades dos atores hegemônicos do mundo capitalista. Ora, como“ideologia que se vende e se impõe aos povos oprimidos é basicamente o projeto econômico-político americano de liderar o ultra-imperialismo futuro”, afirma o professor da USP Armen Mamigonian.
O acesso aos mais diversos objetos tecnológicos, todo tipo de informação, a busca desenfreada pelo “luxo” e consumo, por exemplo, contribuíram para alavancar e solidificar as economias mundiais. Tudo passou a girar, de forma mais acelerada, em torno do dinheiro e da mais-valia, sufocando e eliminando as solidariedades orgânicas à medida que o mundo ia se tornando mais “globalizado”. Uma globalização que é acima de tudo econômica; e, que contribui para o fechamento de fronteiras, a quebra de leis e direitos trabalhistas, aumento de trabalhadores(as) informais, crescimento de famintos, surgimento de novas enfermidades entre outros.
Assim, a globalização, através do mercado, impõe normas e regras mediante uma difusão falaciosa de igualdade. Diversos países, comandados por uma elite política de direita e/ou extrema direita, como é o caso atual do Brasil, as acolhem veementemente, se distanciando de metas de desenvolvimento interno e agravando as condições socioeconômicas da maioria da população (Sueli Schiffer). A constituição de novas desigualdades e aprofundamento daquelas já existentes é reflexo dessas imposições, dadas mediante a saída do Estado na gestão de políticas públicas e a entrada dos sistemas privados na organização e controle destas, transformando direitos essenciais em serviços mercadológicos, como o sistema de saúde, retirando do Estado a responsabilidade de mantê-los de forma pública, gratuita e de qualidade para toda população.
Paralelamente aos avanços alcançados pela globalização têm-se crescentes disparidades resultantes da impregnação cada vez maior de objetos técnicos-científicos-informacionais em espaços selecionados de acordo com interesses de uma elite externa e/ou interna, definindo quais os mais fluidos, mais luminosos etc. Ou seja, quais aqueles onde a globalização vai estar mais presente e dominante, representados pelo movimento da população, distribuição da indústria e serviços, arcabouço normativo, incluídas a legislação civil, fiscal e financeira (Santos e Silveira). Essa realidade tem refletido na massa populacional, ficando às margens de um sistema econômico que sobrevive da desigualdade que dele resulta, restando-lhe recorrer às políticas públicas que, devem ser criadas e implementadas pelos governos – federal, estadual e municipal.
O ano de 2020 demostra que essa globalização, tão cara aos agentes econômicos e oligarquias financeiras, torna-se insustentável diante de uma crise de grande magnitude como está resultante do coronavírus. Este inimigo tem sido capaz de frear a aceleração contemporânea, marcando, nas páginas da história, o ano de 2020 como aquele em que o mundo “parou”. Com efeito, aceleração e globalização são sinônimos. Desse modo, a desaceleração causada pelo vírus torna oportuno nos perguntamos sobre os rumos da globalização. Ele, o vírus, não nos ensinaria a pensar uma outra globalização, conforme nos convidava Milton Santos?
Os efeitos causados por este vírus atingiram em cheio os principais países que comandam esse processo, em virtude de serem aqueles onde se têm os maiores fluxos do mundo presente – financeiros, transportes (aéreos, marítimos, terrestres) e informacionais –, facilitando a propagação da covid-19. Os maiores números de contágios e mortes (tabela 1) concentram-se nos países onde estão algumas das maiores bolsas econômicas do mundo (Bolsa de Valores de New York (NYSE), NASDAQ, Bolsa de Shanghai, Euronext) e os representantes mais poderosos do sistema capitalista do mundo globalizado (imagem 1).

A tabela 1 apresenta o quantitativo de casos e mortes no mundo e nos dez primeiros países, tendo como referência o dia 2 de maio de 2020. Além dos Estados Unidos com o maior número de contágios e mortes, o Brasil, ocupando a 10ª e 8ª posição, respectivamente, e o Irã que aparece em 9º lugar, os demais estão localizados no continente europeu – Espanha, Itália, Reino Unido e França apresentando os maiores números de contágios e mortes.
Imagem 1. Casos Acumulados Confirmados de COVID19 no Mundo
Fonte: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
Logo, parece verídico, que a covid-19 ganhou impulso e pegou “carona” neste fenômeno da globalização, deslocando-se de um país a outro de forma muito rápida, principalmente, através dos fluxos aéreos, ou como afirma Denis Castilho em texto publicado no Pragmatismo Político: “é tributário da modernização contemporânea e, por isso, carrega figurativamente o DNA da globalização”.
Os países que se encontram na periferia do capitalismo e que são mantidos distantes do “banquete” da globalização também são atingidos, e de maneira mais aterrorizante, colocando em “xeque” os deficitários sistemas de saúde, provocando uma onda de contágios e mortes, principalmente, naqueles em que as medidas necessárias de contenção e não propagação do vírus não são atendidas, afetando diretamente os que vivem à margem da sociedade, na periferia das grandes cidades ou nas mais remotas áreas de suas regiões, com ausência de condições mínimas de higiene, a exemplo de saneamento básico, como apontado pela professora da USP Larissa Bombardi no artigo “Covid-19, desigualdade social e tragédia no Brasil”, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil.
Analisando os dados de contágios e mortes na América do Sul (tabela 2) no dia 02 de maio de 2020, verificou-se uma disparidade enorme entre o Brasil e os demais países, apresentando 6.641 mortes de um total de 9.715, equivalente a 68,35% das mortes. Enquanto todos os demais, juntos, apresentaram 3.074. Do total de 190.088 casos confirmados, o Brasil seguia liderando o ranking com 48,50%, representando 92.202 contágios.
Diante dessas cifras, é preciso pensar e refletir a realidade em que milhões de pessoas vivem no Brasil e como estão enfrentando a velocidade com que o vírus se espalha. Os contrates são visíveis, com uma desigualdade presente em todo o território brasileiro, mesmo naquelas regiões onde estão presentes as maiores densidades técnicas, científicas e informacionais, maiores concentrações financeiras e os maiores fluxos, a exemplo do Sudeste.
No entanto, é na periferia brasileira que o vírus tem apresentado uma maior letalidade, visto o quantitativo de contágios e mortes em relação a densidade populacional de cada estado. Os estados do Ceará (5.421 contágios e 310 mortes), Pernambuco (4.507 contágios e 381 mortes) e Amazonas (3.635 contágios e 287 mortes) aparecem como os mais afetados em número total, além das capitais e principais cidades dos demais estados brasileiros. A imagem 2 mostra a estimativa de casos no Brasil para o dia 28/4/2020, confirmando a concentração do vírus nas áreas mencionadas. Assim, parece que onde têm-se maiores concentrações, densidades e fluxos a nível nacional, revelam a presença mais ou menos intensa do contágio da covid-19, e uma maior letalidade em áreas onde têm-se maior ou menor presença de infraestruturas básicas adequadas a prevenção, tratamentos e contenção do vírus.
É nítido que as disparidades regionais deixam certos estados mais vulneráveis e necessitados de ações emergenciais em relação a outros, daí a importância que é ter num país como o Brasil, de extensão territorial continental, a proteção do Estado com políticas públicas adequadas de acordo com cada realidade: maior distribuição de renda, fortalecimento da educação, manutenção e investimentos voltados à pesquisa e à saúde, em especial ao Sistema Único de Saúde/SUS (público e gratuito), garantia de empregos e salários, manutenção dos auxílios e criação de novos para quem não tem estabilidade e vive de trabalhos informais, entre outras medidas que garantam o bem-estar social e da vida de toda a população brasileira.
Frente aos ataques por parte desse inimigo contra a massa populacional, verifica-se que os “invisíveis”, os pobres e miseráveis, negados por um capitalismo sedento por lucro e incentivador do consumo sem limite, começaram a aparecer e “gritar o grito” dos silenciados, em virtude de estarem numa encruzilhada entre o emprego e a saúde, entre o morrer de fome ou morrer em decorrência de covid-19.
Imagem 2. Casos Acumulados Confirmados de COVID-19 no Brasil
Fonte: https://coronavirus.jhu.edu/map.html
Junto as ações de proteção à população, devem ser adotadas as recomendações – a exemplo do isolamento e distanciamento social – de órgãos específicos, como a Organização Mundial da Saúde/OMS, de cientistas e especialistas na área, buscando frear a expansão e minimizar os estragos deixados pelo vírus. É preciso evitar recomendações voltadas apenas à manutenção da economia em detrimento da saúde da população. Chama cada vez mais nossa atenção a realidade brasileira, onde o Presidente Jair Messias Bolsonaro se opõe às recomendações voltadas a diminuição da circulação da população e o não funcionamento dos serviços não essenciais. Bolsonaro também tem incitado manifestações contra o isolamento social, contra governadores que estão seguindo as recomendações e contra a mídia, provoca aglomerações, encontrando-se com seus seguidores e mantendo todo tipo de contato direto com eles, destoando do isolamento e distanciamento recomendados pela OMS.
Nessa guerra, todos nós teremos pela frente uma longa batalha contra a covid-19, a quarentena vem demonstrando ter eficácia nos países em que ela foi adotada de modo mais organizado, a exemplo da Espanha que, viu as curvas de contágios e mortes atingirem seus picos e entrarem numa queda significativa, e após 48 dias de quarentena começou uma leve abertura de suas atividades. Outro caso é a China, que já não aparece entre as 10 nações mais afetadas e, também, vem retomando as atividades pouco a pouco. Assim, é com a redução do movimento, em todas as instâncias que venceremos essa guerra e sairemos vivos para seguir lutando, ou como aponta Jesus Neto em Outras Palavras, “ou desaceleramos ou morremos todos”. Desacelerar não seria o primeiro passo para uma outra globalização?
Gostaria de fazer um agradecimento especial a Fran Alavina e Ricardo Leão, pelo incentivo em tecer alguns comentários sobre esta pandemia e como a Geografia pode nos ajudar a compreender o momento atual, bem como as sugestões e leitura final.

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